Por Fabíola Cunha, advogada da Areal Pires Advogados, e Alex Strotbek, especialista no Ramo Imobiliário 

Diante da crise financeira que abala a economia brasileira há alguns anos, diversos setores foram atingidos negativamente, e o setor imobiliário não ficou de fora. 

Isso se deu pelo grande número de compradores que desistiram da aquisição de imóveis e pleitearam o desfazimento dos contratos, que é a resolução contratual chamada de “distrato”. 

Por conta do enorme impacto desses distratos na economia brasileira foi editada a Lei 13.786/2018, que fixou diretrizes e norteou consumidores, empresas e o Judiciário. 

A lei permite, nos casos de distratos por iniciativa do adquirente e sem que haja culpa da incorporadora, a retenção de 25% dos valores pagos, devendo a diferença ser paga ao comprador que desistiu em até 180 dias ou quando da realização de nova venda da unidade. Se estiver subordinada ao regime do patrimônio de afetação, a retenção é de 50%. E, nos loteamentos, a retenção máxima permitida é de 10% do valor do contrato. 

No ano de 2019 o setor imobiliário começou a dar sinais de recuperação, contudo, em março de 2020 iniciou o momento da pandemia do Covid-19 no Brasil. 

Hodiernamente, diante da pandemia do Corona Vírus, o risco de uma nova onda de revisões e cancelamentos de contratos imobiliários pode ser deflagrada e vai colocar em teste a supramencionada lei, se é que esta poderá ser aplicada em meio a pandemia.  

Porém, não se pode esquecer que estamos vivenciando um estado de exceção, ou seja, as alterações promovidas à época na Lei 4.591/64 – Lei de Condomínio e Incorporações – através da Lei 13.786/2018 – visavam resolver inúmeras discussões e entendimentos controvertidos quanto às relações contratuais entre adquirentes e incorporadoras / construtoras. O que não necessariamente irá se aplicar no contexto pandêmico o qual estamos vivendo. 

No caso das incorporadoras, muitas provavelmente vão deixar de entregar obras no prazo por diversos problemas de força maior, seja pela dificuldade de receber material, ou seja, pela mão-de-obra reduzida, ou mesmo diante das diretrizes governamentais, as quais determinou o isolamento social. Portanto, por óbvio que todo e qualquer atraso na entrega do bem imóvel em construção deverá ser entendido como fortuito externo se motivado pela crise pandêmica.  

 Já os compradores podem ficar desempregados ou ter salários reduzidos, pequenos empresários terão seus negócios fechados, assim como também estão à mercê dos acontecimentos externos, não tendo qualquer tipo de ingerência sobre a crise que assola a humanidade, e, por tais motivos, já estamos vivenciando demandas de adquirentes também, os quais já buscam o distrato diante sua incapacidade de honrar com os pagamentos da futura unidade imobiliária. 

De fato tanto a lei, assim como os entendimentos sumulados pelos Tribunais Regionais e Superiores, sobretudo o Superior Tribunal de Justiça, olharem sempre para casos, nos quais possa se atribuir uma motivação de uma das partes, não prevendo a situação de fortuito externo – força maior – o qual afetaria ambas as partes de forma igual.  

Como resolver então uma eventual enxurrada de distratos motivados por uma crise pandêmica. Este será justamente um grande desafio para nossos magistrados. Estes farão face ao confronto entre o princípio do cumprimento integral e absoluto do contrato, o tal mencionado pelos juristas “pacta sunt servanda”, e a onerosidade excessiva prevista em nossa legislação cível. 

Ainda como bem lembrado recentemente pelo recém falecido e Ilustre Jurista Sylvio Capanema, esta não é a primeira vez na história da sociedade e no meio jurídico, no qual o Judiciário enfrentará grande dificuldade na apreciação de ações revisionais ou aquelas que buscam a resolução de um contrato, visto, já termos tido na França logo após a 1ª. Grande Guerra a promulgação da Lei Faillot, a qual consentia a intervenção do Judiciário na revisão dos contratos, tirando assim a obrigatoriedade absoluta dos negócios jurídicos, estes afetados pelo fato impeditivo de força maior. Não menos importante também lembrar, que a França não fora à época a primeira na inserção do princípio da imprevisibilidade no sistema jurídico, mas poucos anos antes, a Itália já publicará Decreto Real, o qual admitia a intervenção do Judiciário nos contratos bilaterais onerosos. Portanto, não estamos diante de uma situação totalmente desconhecida.  

O atual momento é um evento de proporções nunca antes enfrentadas, com potencial de desestabilizar todas as relações contratuais, tornando pouco útil nosso arcabouço doutrinário e jurisprudencial atuais sobre os conceitos de força maior, caso fortuito e de revisão judicial dos contratos. 

Diante disso, o atraso na entrega da obra por problemas decorrentes da pandemia, superado o prazo de carência de 180 dias, não será considerado culpa do empreendedor, ficando suspenso até que a situação seja normalizada. 

Tal suspensão deve ser levada em conta na eventual aplicação do art. 43-A, parágrafos 2º e 3º. da lei 4.591/64, que sujeitam a incorporadora à devolução integral dos valores pagos e ao pagamento da multa contratual por atraso de obra. 

Em atendimento ao dever de transparência previsto no Código de Defesa do Consumidor a previsão de atraso da obra deve ser devidamente comunicada. 

Há de ressaltar que todas as empresas do ramo imobiliário que realizam um empreendimento devem agir com responsabilidade e avaliar sua condição de levá-lo adiante neste momento excepcional. 

Se, como consequência da pandemia, a incorporadora demonstrar que não conseguirá concluir o empreendimento, há a possibilidade de desistência mesmo que já ultrapassado o prazo de carência previsto no art. 34 da lei 4.591/64. Nessa situação, o direito dos consumidores que estejam adimplentes e não tenham requisitado o distrato é a devolução integral, sem abatimentos ou retenções. 

Muitos outros desdobramentos irão surgir de acordo com o avançar dos meses, e com toda certeza, esses casos chegarão ao judiciário. 

Ainda há poucos julgados sobre o tema distrato diante da pandemia, mas, o TJ-SP entendeu que investidores devem ter tratamento diferente em distratos, e como bem salienta o Acórdão da 4ª. Câm. Cível do TJSP, relator Des. Teixeira Leite – Ap. 1116739-74.2016.9.26.0100“a busca da solução mais justa exige uma abordagem sistêmica quanto aos efeitos para o empreendimento e para a sociedade, bem como da pessoa do consumidor que pleiteia o distrato: se é alguém que perdeu o emprego e ficou sem recursos, ou se é um investidor que adquiriu mais um imóvel para renda. São situações bastante diferentes que comportam tratamentos diversos.” 

Destarte, é preciso que incorporadoras, consumidores e todas os componentes do Judiciário tenham a compreensão do momento singular vivenciado diante da pandemia e procurem soluções equilibradas, visando resguardar a sociedade. 

O que se espera neste momento pandêmico e crucial, é a incessante busca pelo equilíbrio, para que o próprio Judiciário não se contamine com a discórdia, use de seu poder discricionário de decisão com sabedoria. 

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