O tema que me cabe é o da judicialização da saúde, em cuja abordagem adotarei a metodologia retórica de Peter Haberle, que consiste na formulação de um catálogo de perguntas, as quais, uma vez respondidas, permitirão intuir a extensão e a complexidade da matéria. E as questões são as seguintes:

1) Quais os fundamentos do dever do Estado de tutelar a saúde?
2) O que explica o assombroso quadro de judicialização da saúde?
3) Nesse domínio, quais são os temas objeto de judicialização?
4) Quais são as críticas reiteradas às decisões judiciais nessa matéria?
5) Como o Poder Judiciário tem se posicionado a respeito do problema?

Passo às repostas:

Quais os fundamentos do dever do Estado de tutelar a saúde?
Ainda em seu preâmbulo, a Constituição da República Federativa do Brasil indica que o Estado democrático por ela instituído se destina a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça.

Já o artigo 1º, inciso III, erige a dignidade da pessoa humana como fundamento da própria República e do Estado democrático de direito.

Nessa mesma linha, nos artigos 5º, caput e parágrafos 1º e 2.º, 6.º e 196 a 200, a Carta Magna trata da igualdade, do direito à vida, da eficácia imediata dos direitos fundamentais e do direito à proteção e à saúde.

O direito à saúde está relacionado em nossa constituição como um direito social. Os direitos sociais, tal como os direitos de liberdade, são direitos fundamentais constitucionalmente reconhecidos, porque considerados como imprescindíveis ao desenvolvimento do homem, de modo a assegurar a dignidade cabível a cada ser humano individual e socialmente[3].

Portanto, a Constituição de 1988 afirma o direito à saúde como direito fundamental, que demanda ações do Estado contra a carência que atinge o indivíduo. Exige do Estado deveres de respeito, deveres de proteção e deveres de promoção[4].

O que explica o assombroso quadro de judicialização da saúde?
Se o cumprimento dos deveres estatais de promoção do acesso individual aos bens jusfundamentalmente protegidos são negligenciados, o caminho natural é que haja uma invocação jurídica de um determinado direito social, como é o caso do direito à saúde, em determinada situação concreta. O mesmo se diga em relação ao descumprimento de contratos por parte das operadoras de planos de saúde.

Mas, por que isso ocorre com maior intensidade agora do que antes? Por exemplo, uma pesquisa feita em 2008 sobre a judicialização da saúde revelou que no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foram localizadas 111 decisões relacionadas à saúde suplementar com pedidos assistenciais, somente no ano de 2005, número superior ao total das decisões analisadas de 1991 a 1998[5].

Está claro que, neste momento, aparece com vigor o protagonismo social e político do Poder Judiciário, coincidindo com o fenômeno da deslegitimação dos poderes políticos e da crise de crença na autoridade pública.

Neste novo cenário, o Judiciário vem recebendo diferentes tipos de demandas, que terminam por promover uma significativa pressão sobre o aparato judicial.

A função do Judiciário sofreu substancial modificação. Passou a atuar como órgão calibrador de tensões sociais, solucionando conflitos de conteúdo social, político e jurídico, e também implementando o conteúdo promocional do Direito. Coube-lhe o desafio eliminar a distância entre a promessa de direito e a sua efetivação.

A ideia de acesso à Justiça não mais se limita ao mero acesso aos tribunais: “não se trata apenas e somente de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, mas de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa”[6]. Trata-se, a rigor, da promoção da cidadania àqueles que se encontram em condição social desfavorável.

Mas, por que o acesso à Justiça e a luta por direitos se orienta, crescentemente, em direção ao Judiciário? Na verdade, demandas que antes eram dirigidas ao Legislativo e são apresentadas, agora, ao Judiciário, na expectativa de que ele venha a suprir determinados serviços negligenciados pela Administração Pública.

Registre-se que o atual protagonismo do Judiciário é menos o resultado desejado por esse Poder e mais um efeito inesperado da transição para a democracia, sob a circunstância de uma reestruturação das relações entre o Estado e a sociedade. E a denominada crise do Poder Judiciário nada mais é do que a sua súbita adaptação à feição contemporânea da sociedade brasileira, sem estar equipado material, conceitual e doutrinariamente para dar conta da carga de novos problemas que a sociedade passou a lhe apresentar[7].

Não bastasse isso, na questão específica da proteção à saúde, “o Brasil mantém um intrincado e gigantesco sistema de prestação de serviços de saúde, direcionado à prestação universal e gratuita de serviços de assistência”[8], que envolve todos os Estados da federação, os quais devem atuar articuladamente. O Sistema Único de Saúde, embora tenha representado grande avanço na assitência à população, não tem a eficâcia desejada, “notadamente em razão das características socioeconômicas brasileiras, em que avultam impressionantes desigualdades sociais e regionais, e da grandeza do espaço geográfico a ser coberto”[9], bem assim a existência de órgãos com atuvidades concorrentes ou complementares.

Assim, são notórias as “falhas no serviço de saúde, de insuficiência de quadro médico, de baixa qualificação do serviços em geral, de carências materiais elementares, de superlotação de equipamentos públicos de saúde”[10], de terceirização de mão-de-obra, fragilidade dos programas de prevenção de doenças, falta de medicamentos, entre outros.

Some-se a tudo os incalculáveis pontos de atrito que podem ser gerados nas relações contratuais entre o consumidor e as operadoras de planos de saúde suplementar e está delineado o cenário da absurdamente excessiva judicialização da saúde no Brasil.

Nesse domínio, quais são os temas objeto das demandas judiciais?
Registre-se, inicialmente, que não há dados definitivos quanto a esta questão.

De qualquer modo, aqui é necessário fazer uma divisão entre as ações promovidas em face do Estado e aquelas ajuizadas contra os operadores de planos de saúde.

Quanto a estas últimas, ações contra as operadoras de planos de saúde, as discussões no âmbito do Fórum Nacional de Saúde do Conselho Nacional de Justiça identificou como as mais comuns as que envolvem, entre outros, os seguintes temas[11]:

Contratos de pano de saúde antigos (antes da Lei 9.656/98) e o Direito Intertemporal
Esse é um problema recorrente e que apresenta divergência de interpretação entre o STJ e o STF, ainda não enfrentada.

O STF entende que a lei nova não se aplica aos efeitos dos contratos celebrados antes da vigência da nova lei e sim aos ocorridos a partir dela, em respeito ao ato jurídico perfeito.

Já o STJ tem aplicado a lei nova (inclusive o Estatuto do Idoso, no caso de aumento de preço por variação etária) nos contratos firmados antes da vigência dela, desde que o aumento tenha ocorrido depois.

Isso gera muitos recursos. As operadoras alegam no STJ (em sede de Recurso Especial) a violação de garantia constitucional e a corte não conhece da matéria, porque entende que é da competência do STF. A operadora então interpõe o Recurso Extraordinário e o STF não conhece da matéria porque importa em exame do contrato para saber a data da celebração do negócio e, portanto, implica em exame de prova, o que não é possível naquela Corte.

O resultado é uma insegurança jurídica que envolve mais de 7 milhões de usuários que ainda tem contratos antigos, sem falar naqueles que foram celebrados antes do Estatuto do Idoso e depois da Lei 9.656/98.

Cobertura nos Casos de Urgência e Emergência
O prazo para atendimento de urgência e emergência fixado na lei é de 24 horas, sem qualquer distinção. A regulamentação da ANS extrapola o limite regulamentar e coloca que no caso de emergência na segmentação hospitalar durante o prazo de carência (180 dias) o atendimento será ambulatorial, enquanto que no caso de urgência, a cobertura será integral. Como se observa, a regulamentação dada não se compatibiliza com os termos da lei e cria tratamento diferenciado para situações idênticas (urgência e emergência).

Outro aspecto nesse tema é que a regulamentação, para o atendimento ambulatorial, nas situações de urgência e emergência, durante o prazo de carência, estabeleceu um atendimento de 12 horas, quando o objetivo da lei — e deveria ser o da regulamentação — é preservar a vida, o órgão ou a função em risco, em razão da emergência ou da urgência. Não há como se estabelecer, perviamente, prazo, quando menos de 12 horas, para retirar o enfermo da situação de risco.

Recusa de cobertura em geral
O país tem mais de 47 milhões de usuários de planos de saúde.

O que se tem observado é que as operadoras contam com a ineficiência e limitações de aparelho estatal para coibir os abusos, fato que estimula a indústria da indevida recusa de cobertura.

A ANS, também não tem estrutura para fiscalizar esse gigantesco mercado e o MP tem tantas outras atribuições que esse setor fica num segundo plano.

Os demais órgãos de defesa do consumidor têm uma cultura de resolver individualmente os conflitos, o que só alimenta o ânimo das operadoras de continuar com o lucrativo comportamento de recusar indevidamente as coberturas.

A prova de tudo isso está no baixo número de ações coletivas existentes nas serventias judiciais e as poucas que existem são manejadas pela própria sociedade civil através das associações de defesa dos consumidores que, sem duvida alguma, não estão estruturadas para a tarefa.

Acumulam-se, então os processos sobre a mesma temática e cuja a decisão final, em regra, reconhece a abusividade do comportamento das operadoras.

Fornecimento de órtese, prótese e endoprótese e procedimentos com robótica e vídeo
De acordo com a regulamentação da ANS, o médico assistente do consumidor deve indicar três fabricantes que forneçam as OPE, ficando a escolha para operadora e, se houver divergência entre esta e o médico assistente, um terceiro médico será convocado para desempatar a questão.

Ocorre que, frequentemente, embora o médico assistente do consumidor faça a indicação dos três fabricantes quando do pedido de liberação para cobertura da despesa, o plano a recusa, com fundamento no custo excessivo.

Quanto aos procedimentos com robótica e vídeos, o rol de procedimento é apenas a cobertura mínima, segundo as regras da ANS. Portanto, se o usuário é portador de uma enfermidade coberta pelo contrato e o procedimento não está ainda no rol, a operadora tem a obrigação de cobrir a despesa para atender ao objeto do contrato. Acontece que no caso dos procedimentos com robótica, vídeo, laser, entre outros, a regulação diz que só estará obrigada a cobrir aquilo que estiver explicito no rol de procedimentos. Mas aí, a enfermidade coberta pelo plano será tratada com uma técnica atrasada e invasiva, com evidente violação da lei e do contrato.

Indenização por Danos Morais
O comportamento ilícito das operadoras, diuturnamente reconhecido nas milhares de ações propostas pelos consumidores, demonstra existir lesão aos direitos da personalidade.

O STJ entende que o simples inadimplemento de uma cláusula contratual não induz dano moral, porém, no caso de planos de saúde a presunção é de que há dano imaterial porque o inadimplemento se refere a bem jurídico que envolve a dignidade do consumidor.

Acontece que a indenização por danos morais tem dupla função: a primeira, uma satisfação para a vítima, como forma de minorar a tristeza e angustia que foi injustamente imposta pela operadora com a indevida recusa de cobertura e, a segunda, pedagógica, para impedir, pela punição, que o ofensor, a operadora, torne a assim se comportar.

No Brasil as indenizações são pífias, de modo que resta não atendida a segunda finalidade, o que gera um círculo vicioso.

Ainda há outros temas, menos freqüentes, como recusa de cobertura por entender o médico auditor da operadora que aquele procedimento solicitado pelo médico assistente do consumidor enfermo não é o mais adequado por razões meramente econômicas, para que o profissional adote métodos mais baratos, muitos dos quais atrasados tecnologicamente, e o da cobertura de doenças e lesões preexistentes. E, ainda, a judicialização das multas aplicadas pela agencia reguladora.

Já as ações contra os entes estatais podem tratar de pedidos de medicamentos e tratamentos constantes nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do Estado, ou seja, na padronização estabelecida pela Política Pública de Saúde, em seus três níveis de governo, ou podem ter relação a bens e produtos excepcionais e de alto custo e outros não padronizados pela política de saúde.

No que concerne aos pedidos de tratamentos e dispensação de medicamentos previstos em lei, planos ou protocolos específicos estabelecidos pelo SUS, embora representem, talvez, a maior parte das demandas, “os problemas são meramente circunstanciais, envolvendo carências eventuais dos estoques públicos ou discussão específica de contingências pessoais” [12], ausência de leitos hospitalares, insuficiência de profissionais. Em tais casos, não está “em discussão a obrigação estatal de atendimento e fornecimento de medicação e sim a ineficácia do próprio sistema.”

Os grandes problemas são enfrentados nas ações em que se postulam tratamentos e medicamentos não previstos nas leis, nos protocolos e diretrizes das políticas públicas de saúde, todas elas fundadas na aplicação direta da Constituição. Nesses casos, sobreleva o problema de o juiz não ter informações suficientes sobre a “eficácia terapêutica dos medicamentos e tratamentos não-padronizados, se estes possuem equivalentes terapêuticos oferecidos pelos serviços públicos de saúde capazes de tratar adequadamente os cidadãos que buscam a tutela judicial, e se estes cidadãos oferecem ou não resistência terapêutica a estes medicamentos padronizados”[13]. Há, ainda, o problema da utilização do judiciário para fins escusos, como o atendimento de interesses da indústria farmacêutica e de próteses, por exemplo. Também não é desconhecida a repetição de ações, pelo mesmo cidadão, apresentadas em face da União, do Estado e do Município.

Somem-se a estas demandas aquelas envolvendo a alegação de direitos sobre testes com medicamentos, ajuizadas para evitar a comercialização de produtos genéricos, ações em que se busca prioridade na inspeção de plantas industriais para a liberação da comercialização de medicamentos, entre outras.

Acrescentaria uma terceira categoria de demandas judiciais envolvendo a tutela à saúde, todas relacionadas com o meio-ambiente de trabalho. Refiro-me aos acidentes de trabalho e doenças a ele equiparadas, que apresentam grande potencial de litigância. Primeiro, poderão gerar ações na Justiça Estadual, do trabalhador acidentado em face do órgão previdenciário. Gerarão ações na Justiça do Trabalho, em que o obreiro buscará reparação por danos morais decorrentes do acidente ou da doença. Por fim, uma vez reconhecida a culpa do empregador, poderão gerar ações de regresso do INSS contra a empresa, para ressarcimento dos recursos despendidos com o benefício previdenciário.

Acidentes de trabalho, aliás, são muito comuns nos hospitais e clínicas, seja pela falta de qualificação dos profissionais, em regra prestadores de serviços terceirizados, seja pelas excessivas jornadas de trabalho ali praticadas, bem como os inúmeros vínculos de trabalho mantidos por cada profissional. A prática de terceirização de serviços médicos, adotada nas redes pública e privada, gera extremos com a existência de hospitais sem nenhum profissional a ele formalmente vinculado, em evidente afronta às normas trabalhistas (artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho) e mesmo à jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (Súmula 331). Quanto às jornadas excessivas, há centenas de registros no CNES de duração semanal de trabalho superior a 168 horas, que é a duração da semana inteira[14]. Tais acúmulos se dão, em regra, pelo cumprimento de escalas de 12 por 36 horas, prestadas a mais de um tomador de serviços, hipótese que afronta as disposições constitucionais e legais sobre o tema (artigo 7º XIII e 59, parágrafo 2º, da CLT).

Semelhantes características da prestação de serviços na área de saúde, por razões evidentes, terminam produzindo frequentes erros médicos que, por sua vez, ensejam ações judiciais em que se postulam indenizações por danos materiais e morais.

Quais são as críticas reiteradas às decisões judiciais nessa matéria?
Todos os aspectos acima referidos, submetidos ao Poder Judiciário, especialmente no caso de medicamentos excepcionais, abrem espaço ao ativismo judicial, que provoca uma reação de segmentos dos outros poderes e das corporações econômicas, desacostumados, uns e outros, a conviver com essa situação. Ainda que se enfatize que o Judiciário, agindo sempre por provocação do direito de ação, não sai em busca de uma ingerência em políticas públicas, programas econômicos ou planos de governo.

As críticas são generalizadas, porque as decisões, em sua esmagadora maioria, são favoráveis aos cidadãos demandantes. Por exemplo, pesquisa feita em São Paulo, no período de 1997 a 2004, revelou que em 93,5% dos casos de pedidos de dispensação de medicamentos excepcionais, estes foram concedidos em caráter liminar e, ao final, 96,4% dos processos foram julgados procedentes e nenhum improcedente (os demais 3,6% foram extintos sem julgamento)[15]. Por força de decisões como estas, apenas em 2003 foram gastos R$ 1,05 bilhão no fornecimento de medicamentos excepcionais no país[16]. Há informações divulgadas de que 50% de todo o orçamento destinado à saúde no Rio Grande do Sul têm sido comprometido com a compra de medicamentos por ordem judicial[17]. Outro exemplo: em 2007, no Estado do Rio de Janeiro, foram gastos com os programas de assistência farmacêutica R$ 240.621.568 milhão, enquanto que ao saneamento básico foram destinados apenas R$ 102.960.276 milhão[18].

Tais decisões judiciais são criticadas, especialmente, ao argumento de que o atendimento de tais pedidos atende aos interesses das classes privilegiadas, que têm maior facilidade de acesso ao Judiciário, e terminam por inviabilizar políticas públicas de saúde eficazes, uma vez que comprometem, com a entrega a poucas pessoas de atendimentos e medicamentos extremamente caros, os escassos recursos destinados à proteção à saúde de toda a população[19]. Enfim, o entendimento é o de que “o benefício auferido pela população (com tais decisões) é significativamente menor do que aquele que seria obtido caso os mesmos recursos fossem investidos em outras políticas de saúde pública”[20].

O percentual de êxito dos demandantes não é diferente nas ações contra as operadoras de planos de saúde.

Pesquisa encomendada pela Unimed/Belo Horizonte, publicada em 2010, e que avaliou decisões dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro, constatou que, na maioria dos Acórdãos estudados, o consumidor obteve êxito em seu pedido assistencial. O percentual médio de aproveitamento do consumidor, nos quatro Tribunais de Justiça estudados nos três anos objeto de análise, foi de 86% (chegando a 94% no Rio de Janeiro). As operadoras tiveram êxito em apenas 14% dos casos[21].

O referido documento faz referência a inconsistências em tais julgamentos, apontando que 40% dos acórdãos examinados não mencionaram o diagnóstico do paciente, ou seja, qual teria sido a causa motivadora da ação judicial. Em 88% dos acórdãos, a idade do consumidor não foi informada, e em 26,5% omitiu-se também a data em que o plano de saúde teria sido contratado[22].

Ocorre que as recentes pesquisas de satisfação, feitas com os consumidores, como a da Data Folha, apontando que 77% dos usuários afirmaram que sofreram algum problema com o atendimento[23], bem assim as duras medidas recentemente adotadas pela ANS, indicam que não é sem razão que o quadro das decisões judiciais esteja assim delineado[24].

De todo modo, as críticas parecem desconsiderar que os julgadores, especialmente os de primeira instância, “deparam-se com o insuportável encargo de fazer escolhas trágicas”[25], muitas vezes sem o conhecimento amplo de todas as questões médicas envolvidas.

Como o Poder Judiciário tem se posicionado a respeito do problema?
Muitas são as sugestões apresentadas para a redução das demandas judiciais envolvendo a proteção à saúde. Por exemplo, o professor Luís Roberto Barroso[26] sugere, quanto ao fornecimento de medicamentos, que: no âmbito de ações individuais, a atuação jurisdicional deve ater-se a efetivar a dispensação dos medicamentos constantes das listas elaboradas pelos entes federativos; a alteração das listas pode ser objeto de discussão no âmbito de ações coletivas e nestas a) o Judiciário só pode determinar a inclusão, em lista, de medicamentos de eficácia comprovada, excluindo-se os experimentais e os alternativos; b) o Judiciário deverá optar por substâncias disponíveis no Brasil; c) o Judiciário deverá optar pelo medicamento genérico, de menor custo; d) o Judiciário deverá considerar se o medicamento é indispensável para a manutenção da vida.

Talvez em nenhuma outra esfera a preocupação com o excesso de demandas nesta área é maior do que no próprio Judiciário. Atento ao problema, o Conselho Nacional de Justiça instituiu, em 2010, o Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde. Como providência inicial foi criado um sistema eletrônico de acompanhamento das ações judiciais que envolvem a assistência à saúde. Diversas outras medidas foram tomadas em reuniões e encontros até dezembro de 2011. Em junho de 2012 o Fórum foi reestruturado, com nova composição do Comitê Executivo, agora formado por julgadores, representante do Ministério da Saúde, da ANS e, mais recentemente, da Anvisa.

Desde então, muitas providências foram definidas: pesquisa diagnóstica da judicialização; incorporação no rol de cobertura da ANS as decisões sumuladas ou de repercussão geral, para que os contratos das operadoras não contenham cláusulas nulas de pleno direito, evitando-se demandas judiciais futuras; fornecimento aos julgadores de informações científicas de credibilidade na área de tecnologia da saúde, por meio da incorporação, no site do CNJ, das Notas Técnicas da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec); disponibilização, no site do CNJ, dos nomes dos conciliadores representantes das operadoras de planos de saúde, para estimular a conciliação; proposta de homologação e encaminhamento para imediata execução judicial dos acordos firmados no âmbito dos PROCON e descumpridos; obrigatoriedade de fornecimento pelas operadoras, em linguagem acessível, a razão da negativa da prestação; projeto para o combate ao encarecimento artificial dos serviços de saúde; projeto de curso de direito sanitário, para qualificação dos julgadores; elaboração de memorial sobre as competências no sistema de saúde; elaboração de manual sobre estruturação e atividades dos Comitês Estaduais do Fórum de Saúde; reunião com representantes de todos os Comitês Estaduais; programação da I Jornada sobre Direito Sanitário, a ser feita ainda em 2012; reuniões de trabalho com representantes das operadoras de planos de saúde, com dirigentes da Anvisa, representantes dos Procon; sugestões ao Ministério da Saúde e à Anvisa, para limitação da prática de sobrejornada e terceirização nos serviços de saúde.

O debate travado entre os atores envolvidos e o acúmulo de experiências, ao que parece, tem surtido efeitos animadores. A expectativa é a de que a ação do fórum seja intensificada e cumpra o seu desiderato de redução da litigiosidade nessa área, com a qualificação dos julgadores, sempre na perspectiva do absoluto respeito à independência judicial, a otimização da fiscalização pelas agências reguladoras, o estímulo às ações coletivas, a construção de jurisprudência consentânea com as questões técnicas envolvidas, sem perder de vista, naturalmente, os ditames constitucionais que elevam o direito à saúde à condição de direito fundamental e consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento do estado democrático de direito.

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