A operadora de planos de saúde Prevent Senior é um player do mercado de saúde suplementar pátrio que se especializou no público idoso e em planos individuais ou familiares, ou seja, decidiu se aventurar em nichos não tão atrativos do ponto de vista econômico para as empresas do setor em geral.

Para tanto, investiu em modelo de negócio que conjuga tanto a operação verticalizada – de modo que é detentora de rede e hospitais próprios, utilizados pelos beneficiários –, quanto a medicina preventiva, com concentração de consultas iniciais em médicos generalistas (ou “médicos de família”), que passam a conhecer o paciente, evitando-se desperdícios com consultas em especialistas e exames desnecessários.

Assim, a barreira do aumento de custos para essa faixa etária (sinistralidade) era contornada pelo controle mais eficiente das operações ao longo de toda a cadeia de prestação de serviço.

Entretanto, com a pandemia de Covid-19, diversos problemas desse modelo de negócio surgiram, como o excessivo controle da operadora sobre os prestadores de serviço.

Com efeito, diversas denúncias de beneficiários e de profissionais da área médica, sobretudo ex-empregados da operadora, tornadas públicas através da CPI da Covid, colocaram em dúvida a legalidade de algumas práticas de cunho assistencial alegadamente cometidas pela operadora.

Entre essas práticas estão a realização de estudos médico-científicos em pacientes sem as devidas autorizações dos órgãos públicos; uso de beneficiários como cobaias do chamado “kit Covid”; disponibilização e falta de comunicação aos pacientes sobre o uso de medicamentos de eficácia não comprovada; determinação para que profissionais infectados com o novo coronavírus trabalhassem doentes; coação de médicos para que prescrevessem medicamentos do “kit Covid”; alteração do CID em prontuários e em atestados de óbito; e interrupção de tratamentos para encaminhamento de pacientes a cuidados paliativos.

Tendo em vista a gravidade e a anormalidade desses procedimentos, que colocam em risco a qualidade e a continuidade da assistência prestada aos beneficiários, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) aprovou, em 13 de outubro, a instauração do regime especial de Direção Técnica na aludida operadora de saúde (Resolução Operacional nº 2.698).

Conforme o art. 24 da Lei nº 9.656/1998, “sempre que detectadas nas operadoras sujeitas à disciplina desta Lei insuficiência das garantias do equilíbrio financeiro, anormalidades econômico-financeiras ou administrativas graves que coloquem em risco a continuidade ou a qualidade do atendimento à saúde, a ANS poderá determinar a alienação da carteira, o regime de direção fiscal ou técnica, por prazo não superior a 365 dias, ou a liquidação extrajudicial, conforme a gravidade do caso”.

Ademais, consoante a lei de criação da ANS, compete-lhe “instituir o regime de direção fiscal ou técnica nas operadoras”, definindo as atribuições e competências do Diretor Técnico, bem como fixar das normas de fiscalização desses regimes especiais (art. 4º, XXXIII, XL e XLI, “c”, da Lei nº 9.961/2000).

Assim, para melhor acompanhar e apurar as apontadas irregularidades, o órgão fiscalizador prudentemente designou um Diretor Técnico (Portaria de Pessoal ANS nº 266, de 13/10/2021) para atuar dentro da operadora, acompanhando a rotina in loco, de modo a promover um diagnóstico da situação real das atividades da sociedade empresária, propondo correções, se necessárias.

Dessa forma, não há o comprometimento ou paralisação dos serviços de atendimento médico-hospitalares aos beneficiários, mesmo porque nesse tipo de regime imposto a ANS não interfere na gestão empresarial. Tal diretor indicado não tem poder de administração, mas tão somente de monitorar as atividades e pedir informações.

A regulamentação atual do regime especial de Direção Técnica e do Plano de Recuperação Assistencial no âmbito do mercado de saúde suplementar se encontra na Resolução Normativa (RN-ANS) nº 417/2016, que no art. 2º conceitua “anormalidades administrativas graves de natureza assistencial” como “práticas associadas à desassistência, de modo coletivo, recorrente e não pontual”, que ocasionem, por exemplo, “falhas de natureza assistencial, atuarial, estrutural ou operacional graves que indiquem risco à qualidade e à continuidade do atendimento à saúde dos beneficiários”.

Além disso, a Instrução Normativa (IN) nº 50/2016 da Diretoria de Normas e Habilitação dos Produtos (DIPRO) complementa a regulamentação da RN nº 417/2016, traçando diretrizes.

Nesse contexto, após realizado o diagnóstico da situação pelo Diretor Técnico nomeado, a operadora deverá apresentar um Programa de Saneamento Assistencial (PSA), definido como conjunto de medidas corretivas, estratégias, ações, documentos, metas e cronograma apresentados pelas operadoras, com o objetivo de sanar, durante a vigência da Direção Técnica, as anormalidades administrativas graves de natureza assistencial que motivaram a instauração do regime especial, assim como as demais circunstâncias apontadas pelo diretor técnico.

A duração máxima do regime especial é de 365 dias, sendo concluído com a apresentação de relatório confeccionado pelo Diretor Técnico, que o encaminha à ANS, a qual deliberará a respeito, podendo, em casos de não saneamento dos vícios, decretar a intervenção, afastando os gestores, ou a liquidação extrajudicial da operadora e a alienação compulsória da carteira.

Um exemplo de direção técnica que não conseguiu reverter o quadro geral de anormalidade da operadora foi a Unimed Paulistana, que acabou liquidada extrajudicialmente. Por outro lado, o caso da Unimed Rio foi bem-sucedido, tanto que se conseguiu resolver diversos problemas assistenciais e econômico-fiscais.

Ocorre que o caso da Prevent Senior é peculiar, pois está ligado a possíveis ingerências político-ideológicas na administração empresarial somadas aos modelos de verticalização e de contratualização da rede de prestadores, estes não regulados pela ANS, o que possibilita o cometimento de abusos como os relatados.

Entretanto, conforme a Lei nº 9.961/2000, que criou a ANS, compete a esse órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde, entre outras atribuições, estabelecer as características gerais dos instrumentos contratuais utilizados na atividade das operadoras.

Também compete à ANS estabelecer parâmetros e indicadores de qualidade e de cobertura em assistência à saúde para os serviços próprios e de terceiros oferecidos pelas operadoras; exercer o controle e a avaliação dos aspectos concernentes à garantia de acesso, manutenção e qualidade dos serviços prestados, direta ou indiretamente, pelas operadoras de planos privados de assistência à saúde; fiscalizar aspectos concernentes às coberturas e o cumprimento da legislação referente aos aspectos sanitários e epidemiológicos, relativos à prestação de serviços médicos e hospitalares no âmbito da saúde suplementar; requisitar o fornecimento de informações às operadoras de planos privados, bem como da rede prestadora de serviços a elas credenciadas; zelar pela qualidade dos serviços de assistência à saúde no âmbito da assistência à saúde suplementar (art. 4º, II, V, XV, XXIV, XXVII, XXXI e XXXVII).

Assim, o órgão regulador deveria fiscalizar a operadora verticalizada por completo, inclusive sua rede própria – e não apenas parte do conglomerado –, mormente considerando que, pelo modelo verticalizado, a economia de recursos sempre poderá se sobrepor ao bem-estar do paciente em momentos de crise financeira da empresa, limitando a atuação independente dos profissionais da área médica e assistencial.

Tal disfunção deve ser coibida, ainda mais no cenário de crescente aumento de beneficiários idosos na saúde suplementar, a fim de trazer maior segurança no desfecho clínico do paciente, que não pode ficar à mercê de profissionais controlados pela operadora, preocupada em apenas maximizar lucros, no lugar de observar os interesses dos diversos stakeholders e prestar adequadamente e com qualidade os serviços de assistência à saúde.

A ANS deveria aperfeiçoar a fiscalização dos serviços prestados pelas redes própria, contratada, conveniada, credenciada e referenciada das operadoras de plano de saúde, o que é admitido pela legislação, verificando, inclusive, se estas concretamente exercem pressões indevidas sobre aquelas.

DAVI BRITO DE ALMEIDA – Analista judiciário, assessor de ministro do STJ, mestrando do Programa de Mestrado Profissional em Direito, Regulação e Políticas Públicas da UnB; pós-graduando em Direito Constitucional pelo IDP; especializado em Direito Empresarial (LLM em Direito Empresarial pela FGV)

Fonte: Jota 

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