Análise da decisão do STF de indenizar hospitais privados que prestem serviços a usuários do SUS por meio dos valores da ANS

Lê-se no JOTA[1] que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) – de indenizar hospitais privados que prestem serviços a usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) por meio dos valores da Agência Nacional de Saúde (ANS) e não da Tabela do SUS – gera receio, em procuradores estaduais, de que não haja mais interesse de hospitais privados firmarem convênio com o SUS, já que serão remunerados por valores maiores nas hipóteses de assistência complementar de saúde. Muito válido o alerta!

Trata-se da decisão proferida no âmbito do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 666094, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, cuja argumentação pautou-se no respeito à livre iniciativa e à propriedade privada dos prestadores de serviços de saúde privados que atendem pacientes do SUS. Firmou-se, inclusive, tese nesse sentido, para fins de repercussão geral[2].

Ora, é interessante notar que o SUS sofre restrições paulatinas, mas profundas, nos últimos anos e a supracitada decisão é mais um sintoma dos ataques impostos ao sistema universal, integral e gratuito de saúde que o Brasil quis para si a partir de 05 de outubro de 1988, com a promulgação da atual Constituição Federal (CF/88). Com efeito, há diagnóstico já bem lançado no mundo jurídico brasileiro sobre o fato de que a “constituição dirigente das políticas públicas e dos direitos sociais é entendida como prejudicial aos interesses do país, causadora última das crises econômicas, do déficit público e da ‘ingovernabilidade’.”[3]

Agora, o próprio STF aponta propriedade privada e livre iniciativa como fundamentos para aumentar a remuneração de serviços de saúde privados prestados por agentes não conveniados ao SUS, gerando risco de debandada de instituições privadas de saúde em relação aos convênios diretos com o sistema público.

Acontece que, para além de qualquer orientação política do intérprete ou do destinatário das normas constitucionais, não se poderia olvidar o que o texto expresso da CF/88 determina sobre propriedade privada e livre iniciativa. O texto, como já afirma Eros Grau, é o ponto de partida da construção da norma, pelo intérprete, e, depois, para a tomada da decisão a ser utilizada na solução de casos concretos[4], inclusive e principalmente no âmbito do Poder Judiciário.

Ora, onde quer que, na CF/88, lê-se propriedade privada, segue-se seu corolário: a função social da propriedade. Notoriamente, no art. 170, que abre a disciplina normativa dos princípios gerais da atividade econômica, prevê-se, no inciso II, a propriedade privada, e, logo depois, no inciso III, a função social da propriedade. O mesmo se  observa no art. 5º, CF/88, que garante a propriedade privada em seu inciso XXII, mas, já no inciso seguinte, determina que “a propriedade atenderá a sua função social”.

Já a livre iniciativa, além de estar atrelada aos valores sociais do trabalho, como fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV, CF/88), também serve de fundamento para a ordem econômica brasileira, porém com a finalidade específica de “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (art. 170, “caput”, CF/88).

Nesse sentido, o aplicador da norma, o juiz ou o Ministro do STF, dever-se-ia pautar no ordenamento jurídico como um todo, promovendo as finalidades e efetivando os fundamentos expressamente previstos na CF/88, inclusive aqueles do art. 3º, como construir uma sociedade justa e solidária (inciso I), erradicar a pobreza e diminuir as desigualdades regionais (inciso III), por exemplo. Não se pode esquecer, ademais, que saúde promove a dignidade da pessoa humana em seu aspecto mais comezinho de garantia à vida digna e à possibilidade de pleno desenvolvimento das capacidades humanas, sendo, bem por isso, considerada direito de todos e dever do Estado (art. 196, “caput”).

Logo, se o aplicador da norma está diante de uma hipótese fática alternativa que pode, conforme a decisão adotada, por um lado, (a) gerar perda de estrutura do SUS e maior oneração ao erário e, de outro, (b) manter o SUS como modelo de acesso à saúde com a menor onerosidade possível aos cofres públicos, não haveria dúvida possível, à luz do ordenamento constitucional brasileiro, sobre qual das duas decisões seria a correta. Não foi a adotada pelo STF no caso em comento.

Ainda, sob a conjuntura constitucional, não age a r. decisão igualando situações iguais, como quer fazer crer o STF. Quando o SUS presta serviços a pacientes com planos privados, utiliza-se a estrutura estatal, universal, gratuita e integral para tais ações de saúde, com remuneração, pois, que deve ser a mais elevada possível dentro do parâmetro de remuneração estatal prevista (aquela da ANS). Promove-se o SUS. Quando o setor privado presta serviços para pacientes que poderiam se utilizar do SUS, nada mais faz do que funcionar como se daquela estrutura estatal se tratasse e, portanto, não faz jus à promoção dessa conduta como se fosse algo louvável ou merecedor de fomento, devendo receber a remuneração básica, padrão, para os atendimentos e ações realizados no âmbito do próprio SUS (a Tabela do SUS). Também assim se promoveria o SUS.

Com efeito, a decisão adotada pelo STF não apenas gera benefício exclusivo para os prestadores privados de serviços de saúde (cuja propriedade privada continuaria desde sempre resguardada pelos serviços – justamente – privados de saúde que prestam a quem não quer ser atendido pelo SUS) como também onera o erário com o pagamento de valores mais elevados do que aqueles que poderiam ser praticados por tais serviços (caso se observasse a própria Tabela do SUS para tal remuneração).

A reafirmação pura e simples da livre iniciativa dos prestadores privados, ademais, somente reforça a inconstitucional e indevida imagem do SUS como sistema subsidiário, destinado a pobres e marginalizados, gerando preferência nas classes médias e altas (que têm poder financeiro-aquisitivo de escolha) pelo atendimento em hospital particular, privado, que agora será ainda mais bem remunerado que antes.

Nesses 33 anos de CF/88, temos que nos perguntar, enquanto nação, enquanto povo, o que se está fazendo do SUS. A decisão do STF foi um novo golpe no já combalido sistema universal, gratuito e integral de promoção da saúde dos brasileiros. Até quando? Até onde?

[1] https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/stf-ressarcimento-hospitais-privados-poe-pressao-tabela-do-sus-05102021, acesso em 05/10/2021.

[2] http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=473985&ori=1, acesso em 05/10/2021.

[3] BERCOVICI, Gilberto. MASSONETTO, Luís Fernando. A Constituição dirigente invertida: a blindagem da Constituição financeira e a agonia da Constituição econômica. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2005, Separata do Boletim de Ciências Econômicas de 2006, p. 19.

[4] Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 29.

LEONARDO GODOY DRIGO – Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela PUC/SP. Bacharel em Filosofia pela PUC/SP. Membro do grupo de pesquisa Crítica do Direito e Subjetividade Jurídica da FADUSP. Assistente jurídico no TJSP.

Fonte: Jota

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