Imagine a situação: a conta do plano de saúde pesa cada vez mais no orçamento da sua família, mas você persiste diligentemente, pagando sem atraso os boletos para garantir a cobertura em um momento de necessidade. Eis que esse momento chega. Você ou um familiar tem um problema de saúde e é instruído pelo médico a adotar um determinado tratamento. A prescrição – sempre importante dizer – segue critérios científicos cristalinos, e você aciona aquele mesmo plano de saúde para, enfim, realizar o procedimento ou comprar o medicamento que pode salvar a sua vida. Nesse momento crítico da nossa breve anedota, a operadora tira uma lista desatualizada de terapias do bolso e diz, sem nenhum embaraço, que você, usuário, terá de arcar com os custos do tratamento sozinho.

O roteiro pode parecer desgastado e simplista, mas para os milhões de consumidores que dependem da saúde suplementar, trata-se de uma amarga e injusta rotina que, em última instância, limita o exercício de um direito fundamental em função da interpretação limitada de uma lista administrativa criada para orientar, e não restringir, a cobertura de saúde. Falamos do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, editado a cada dois anos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

A instrumentalização do Rol em benefício das operadoras voltou ao centro do debate com o iminente julgamento do Recurso Especial nº 1.867.027/RJ pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que estava pautado para 28/4, mas foi adiado. Apesar de o caso não ter sido considerado como repetitivo (não terá, portanto, repercussões em outros processos), espera-se que a 3ª e a 4ª Turma retomem seu entendimento histórico sobre o assunto, no sentido de que as negativas de coberturas baseadas na leitura estrita do Rol são abusivas e ilegais.

O consenso que existia ao redor do caráter exemplificativo do Rol sofreu um brusco revés no julgamento do Recurso Especial 1.733.013/PR pela 4ª Turma em 2019[1], gerando um dissenso  que é amplamente explorado pelas operadoras de planos de saúde para negar acesso a tratamentos.

A ANS, vale dizer, tem se posicionado mais uma vez contra os consumidores e respaldando os argumentos corporativos.

De acordo com a última atualização do Rol feita pelo órgão[2] no início de abril, a lista seria taxativa e qualquer tratamento que não esteja contemplado por ela não precisaria ser coberto pelas operadoras. Além de negligenciar o fato de que a inovação em saúde acontece em ciclos muito mais curtos de tempo do que os dois anos que separam cada edição do Rol – que, desse modo, torna-se defasado por natureza -, a posição da Agência atropela o princípio de que tratamento é assunto médico. Não é da operadora a atribuição de dizer qual é o melhor medicamento ou procedimento para o paciente, mas da autoridade sanitária competente.

O Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) acompanha este debate há anos e entende que qualquer negativa de cobertura que desobedeça à prescrição médica, impedindo o tratamento mais adequado ao usuário, é abusiva e, portanto, ilegal de acordo com o Código de Defesa do Consumidor. Vale lembrar que a própria Lei de Planos de Saúde, nos incisos do art. 10, já elenca os itens que excepcionalmente não precisam ser cobertos pelas operadoras – como é o caso de procedimentos estéticos, tratamentos experimentais e medicamentos que ainda não foram aprovados para o uso no Brasil pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Negar cobertura com base no Rol de procedimentos é violar o equilíbrio e a razão de existir do contrato entre usuários e planos de saúde – a saber, a garantia de saúde integral para os consumidores. O STJ tem nas mãos a oportunidade de pacificar a discussão e recuperar os princípios elementares da relação paciente-operadora. Os consumidores precisam estar protegidos no momento em que mais precisam. E o momento é agora.

[1] Julgamento de 10/12/2019, acórdão publicado em 20/02/2020.

[2] Resolução Normativa nº 465/2021. Disponível em: http://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=TextoLei&format=raw&id=NDAzMw==

ANA CAROLINA NAVARRETE – Advogada e coordenadora do Programa de Saúde do Idec.
MARINA PAULLELLI – advogada do Idec.

Fonte: Jota.info

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