Os problemas que a pandemia evidenciou, sabemos, existiam antes dela. O que ocorreu foi uma dolorosa e intensa demonstração deles – das consequências da desigualdade social à má distribuição de nossos recursos humanos e tecnológicos; da falta de coordenação entre entes públicos ao desperdício na integração destes com o setor privado; da insuficiência de nossa pesquisa, por falta de políticas sustentáveis, à desestruturação do Ministério da Saúde.
A questão é: vamos simplesmente virar a página depois que a pandemia se for e não refletir nem mudar nada? Precisaremos esperar pela próxima pandemia? Ou vamos, com empatia e racionalidade, oferecer algumas respostas objetivas?
1) Mais força, gestão e recursos para o SUS
Não são mais adiáveis a discussão sobre fontes novas de financiamento e uma urgente revisão da forma como ele é gerido e, principalmente, não é coordenado entre os governos federal, estaduais e municipais, problema que a pandemia transformou em festivais diários de idas e vindas, conflitos e ineficiência.
2) Pesquisa, desenvolvimento e produção
Temos dois tipos de cientistas brasileiros: os que saem para o exterior na busca de condições à altura de seus talentos e os teimosos que insistem em permanecer aqui sem verbas, sem apoio, sem segurança. Quando descobrimos, na pandemia, nossa constrangedora dependência de insumos farmacêuticos ou mesmo equipamentos hospitalares, apenas reproduzimos o que já era o dia a dia do setor de saúde. Por isso, repensar pesquisa, desenvolvimento e produção de forma moderna, integrados às melhores cadeias mundiais de produção, mas com forte estímulo ao nacional já era uma necessidade. Agora é uma emergência.
3) O papel fundamental da saúde suplementar
A participação decisiva de hospitais privados, filantrópicos ou não, deve ter contribuído para que definitivamente tiremos do cenário o maniqueísmo entre os poucos que ainda defendem um país “só com SUS ou sem SUS” A agenda real tem que ser outra: como melhor integrar esses serviços. O que se fez no desespero com a falta de UTIs, deveríamos transformar agora em um construtivo exercício para evitar redundância, retrabalho e desperdício de profissionais e equipamentos em algumas regiões e escassez extrema em outras.
4) Rediscutir a formação dos médicos e profissionais de saúde
Revelou-se, pela milésima vez, a péssima distribuição dos recursos humanos pelo país e o caminho cada vez mais perigoso seguido na formação de médicos – o abandono, por falta de estímulos, dos generalistas, médicos de família, pediatras. E a opção, também aqui, da quantidade a qualquer preço, mesmo o da qualidade.
5) Acesso através da tecnologia
A pandemia não foi ainda pior graças à expansão da telemedicina que agora será regulamentada pelo Congresso Nacional. Temos aí chance extraordinária de ampliar acesso, aproximar os dois Brasis – um muito atrasado, outro com excelência em medicina. Mas os obstáculos já apareceram na dificuldade para conciliar a preservação do papel do médico com as novas tecnologias. E a tentativa, apressada de alguns, em fazer da telemedicina apenas uma forma de reduzir custos.
6) Dar sustentabilidade à qualidade
No Brasil, dadas as médias precárias em setores como o nosso, cria-se uma espécie de “ciúme” do que está bem organizado, oferecendo qualidade. No jargão demagógico fala-se que isso “é coisa da Suécia”. Os melhores resultados no enfrentamento da pandemia vieram claramente de hospitais privados e públicos de excelência, com recursos tecnológicos atualizados, equipamentos sofisticados e gente capacitada. Esses mesmos hospitais e laboratórios continuarão sendo penalizados porque perseguem atualização tecnológica, qualificação acreditada e certificada de pessoas, processos e gestão? Queremos estar mais próximos ou ainda mais distantes da “Suécia”?
7) O financiamento das atividades privadas
Uma síntese muito precária do que ocorre hoje mostra um esgotamento do sistema previsto para estimular e financiar a saúde suplementar. Um país que oferece níveis baixíssimos de empregos qualificados e renda média retira boa parte das possibilidades de adesão a planos de saúde. Estes concentram-se então em uma fonte pagadora essencial – as empresas que, pressionadas pela crise econômica, reduzem seus aportes. Em vez de rompermos os limites, os planos de saúde (ou na feliz expressão do Adriano Londres, “planos de doença”) pressionam por redução de custos (o que é saudável) em grande parte às custas de cortes de qualidade (o que é inaceitável).
8) Os elos partidos da cadeia de saúde
Se pacientes, profissionais de saúde, operadoras de planos de saúde, prestadores de serviços médico-hospitalares, fornecedores, contratantes de planos de saúde etc. – se todos estão insatisfeitos, não seria isso sinal mais que evidente que o problema está no sistema como um conjunto e, portanto, a solução deveria depender de uma revisão do todo? Não no Brasil. Os elos da cadeia de saúde têm se dedicado à tentativa inútil de salvar o seu terreno sem se darem conta que vivem em um condomínio sem cercas nem muros? O sistema de saúde não consegue atuar como cadeia, vítima de egos ou segmentação exacerbados. Uma cadeia de elos partidos.
9) Cuida-se da saúde? Não, da doença
O país que um dia combateu o tabagismo e registrou sucesso exemplar dá as costas à atenção primaria. Perguntem à ANS quantos produtos registrados contêm efetiva atuação na proteção à saúde, no combate à obesidade, hipertensão e diabetes. Ou seja: prevenção e proteção à saúde nem tem status político nem recebem estímulos concretos da regulação e da legislação.
10) Não há saúde na desigualdade
A pandemia dramaticamente repete o que já deveria ser sabido: a doença, entre nós, é filha, acima de tudo, da desigualdade. Para a saúde, nada de voltarmos ao velho normal. É preciso homenagear as vítimas da pandemia perseguindo um novo, muito novo normal.
ANTÔNIO BRITTO – Diretor-executivo da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp)
Fonte: Jota