Bráulio Zorzella explica que as mulheres, e não os médicos, devem ser as protagonistas do parto
No início do mês, o Ministério da Saúde emitiu um comunicado orientando para que se fosse evitado e possivelmente abolido o termo “violência obstétrica” em documentos de políticas públicas. A expressão passa a ser considerada ‘imprópria’ pela pasta, que alega que ‘tanto o profissional de saúde quanto os de outras áreas não têm a intencionalidade de prejudicar ou causar dano’. Mas a pretensa falta de intenção não extingue uma realidade enfrentada por grande parte das mulheres brasileiras: estima-se que uma a cada quatro já foi vítima desse tipo de violência, segundo o estudo Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, produzido pelo Sesc e a Fundação Perseu Abramo.
A violência obstétrica consiste na ação ou omissão direcionada à mulher durante o pré-natal, parto ou puerpério, que cause dor, dano ou sofrimento, praticada sem o seu consentimento explícito, ou em desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental e aos seus sentimentos e preferências. A expressão engloba condutas praticadas por todos os prestadores de serviço da área de saúde, não apenas os médicos, explicou Fabiana Dal’Mas Rocha Paes, promotora de Justiça de Enfrentamento à Violência Doméstica de São Paulo recentemente aqui no Estadão.
E uma ‘canetada’ não faz com que a prática deixe de existir, explica o obstetra humanizado Bráulio Zorzella, membro da Reuna, Rede de Humanização do Nascimento, que conversa comigo aqui no blog. Ele explica, ainda, que a medicina deixou o protagonismo da mulher de lado quando assunto é parto. “Fazem muitos procedimentos sem sequer perguntar para a mulher se ela quer ou não quer, se é válido ou não. É muito diferente você dizer para a mulher ‘olha, isso aqui que eu vou fazer agora se chama assim e tem esse e aquele benefício, tudo bem? do que fazer tal procedimento, não perguntar nada e aí a mulher se descobre cheia de pontos que ela não sabe nem de onde vieram. E daí ela passa achar que tudo aquilo é normal, ter parto é isso aí mesmo, sempre foi assim”, explica
Blog: No começo de maio o Ministério da Saúde emitiu um comunicado dizendo que o termo ‘violência obstétrica’é inadequado. O que o senhor acha disso?
Bráulio: Eu acho que se uma pessoa pisar no pé da outra e essa pessoa disser ‘ai, que dor’ e quem pisou disser ‘olha, não doeu, sou eu que decido se doeu ou não, não continue chamando isso de dor’, ou seja, o agressor dizer pro agredido como ele deve ou não se sentir é algo muito infeliz, ou seja, o Ministério da Saúde foi muito infeliz com essa colocação. Primeiro por que esse já é um termo mundial e também muito forte na América Latina, essa expressão já tem uma década e foi criada justamente para nomear uma violência que sempre ocorreu, mas que não tinha nome, então não tem como o Brasil querer acabar com esse termo. É a partir do momento que você nomeia essa violência que você tem como identificá-la e judicializá-la. A violência obstétrica é uma violência contra a mulher grávida, seja no pré-natal, no parto e no pós-parto e quem tem que dizer se sofreu algo não é o Ministério da Saúde, mas sim a mulher.
Blog: O fato de tirarem essa expressão ‘de circulação’ faz com que as mulheres sofram menos do que sofrem hoje?
Bráulio: É que nem quando você reclama de um apelido que não gosta, aí é que ele ‘pega’. O Ministério da Saúde não tem o poder de tirar essas palavras da boca das pessoas. Mas (o Ministério) entende que essa expressão afeta ou agride o médico obstetra e que isso mudaria o foco da questão. E o que posso dizer é que a violência obstétrica é uma violência de gênero contra uma mulher grávida, praticada por qualquer profissional, pode ser médico, enfermeiro, mas pode ser cometida pelo porteiro do hospital, por exemplo. O nome não está sugerindo necessariamente que é o médico quem comete essa violência. Então basta que os médicos em geral, meus colegas todos, e também as organizações entendam que não se está dizendo que é o médico que comete violência obstétrica, mas sim que é a mulher sofre a violência cometida por alguém. É que às vezes ‘a carapuça serve’. Mas o médico que está ao lado das evidências científicas, do melhor parto possível, do conforto para essa mulher e que acredita que o parto tem que ser uma experiência positiva combate a violência obstétrica e não a expressão violência obstétrica.
Blog: A violência obstétrica foi entendida recentemente pelas mulheres, não? Eu tive filho há 9 anos e nunca tinha ouvido essa expressão. Algumas coisas ruins que aconteciam durante o parto eram vistas como algo inevitável, ‘ter filho é assim mesmo’. E para você como médico, quando foi que entendeu que algumas coisas que aconteciam na assistência ao parto não eram normais?
Bráulio: O termo violência obstétrica tem mais ou menos uma década, aqui no Brasil ele ganhou muita força durante o Congresso da Reuna, em 2010, nomeando essa violência, mas isso não significa que ela não acontecia antes. Existe uma pesquisa que aponta que uma em cada quatro mulheres sofre essa violência – mas eu creio que seja muito mais, porque tem gente que não relata ou não sabe que sofreu violência, então eu acho que (esse número) é muito maior. Eu, como médico, abracei essa causa de combate à violência obstétrica porque vi muita coisa errada acontecendo nesse momento do nascimento.
Blog: Que tipos de coisas?
Bráulio: Ações que deixam de lado o protagonismo da mulher, como a escolha do local de parto, por exemplo, ou mesmo dentro do hospital, não deixando que escolha em que posição ela quer parir, aquela coisa do ‘só pode deitada’ – para facilitar o trabalho do médico. Ou até a escolha do local para a mulher que quer parir e dizem ‘não, você não pode parir em casa’, ou seja, querem decidir por ela. Outra questão sobre quem pode estar presente no hospital, a presença ou não de um acompanhante, algo garantido na lei desde 2005 mas não respeitado em muitos lugares que usam desculpas muito ruins como ‘não tem espaço’ ou não pode ‘porque o marido de uma vai ficar olhando para outra’. Também se fazem muitos procedimentos sem sequer perguntar para a mulher se ela quer ou não quer, se é válido ou não. É muito diferente você dizer para a mulher ‘olha, isso aqui que eu vou fazer agora se chama assim e tem esse e aquele benefício, tudo bem?’ do que fazer tal procedimento, não perguntar nada e aí a mulher se descobre cheia de pontos que ela não sabe nem de onde vieram. E daí ela passa achar que tudo aquilo é normal, ‘ter parto é isso aí mesmo, sempre foi assim’.
Blog: É muito comum que se reclame quando a mulher grite durante o parto, que ela chore por sentir dor.
Bráulio: Quando o parto foi levado para dentro do hospital, isso há uns 50 anos, colocou-se várias mulheres para parir no mesmo lugar e isso diminui espaços realmente, e daí se fala ‘não pode entrar ninguém’ e gemer e gritar pode acabar ‘incomodando’ os outros ambientes. O sistema vem dizer, ‘olha, eu que decido pelo seu parto’ em relação a tudo e o médico, hierarquicamente estando acima de todos, assumindo a posição daquele que detém o conhecimento e que, portanto, é quem decide as coisas, invertendo o protagonismo das coisas, ele que vira o protagonista dessa história, diminuindo a mulher naquele momento.
Blog: Muitas mulheres reclamam de humilhações na hora do parto, de ouvirem a frase ‘na hora de fazer esse filho não gritou’. O senhor já ouviu essa frase numa sala de parto?
Bráulio: Sim, já ouvi muitas vezes, tanto da boca de profissionais quanto das mulheres, contando que ouviram isso. É uma humilhação que está dentro desse ‘mesmo pacote’ do patriarcado e do machismo, de colocar o hospital e o médico no centro desse universo. A gente tem que olhar esse cenário e pensar o que podemos fazer de diferente.
Blog: Umas das práticas comuns na sala de parto e que são consideradas violência obstétrica é se negar analgesia para essa mulher. Isso é muito cruel com essa gestante, não é, doutor?
Bráulio: Sim. Todo mundo sabe que parto dói, ninguém coloca isso debaixo do tapete, parto dói bastante, portanto se houver mecanismos de alívio de dor ótimo e esses mecanismos partem desde o pré-natal, com um trabalho de diminuição da ansiedade e de medos que possam levar a um aumento da dor na hora do parto. Em geral a profissional que faz isso é a doula, eu até brinco que a doula é um anestesista natural, que desde antes do parto pode cuidar dessas questões emocionais que podem gerar mais dor na hora do parto. E na hora do nascimento, sua presença ao lado da mulher pode ajudar a lidar com isso oferecendo massagens, variações de posição, uso de água quente, tanto no chuveiro quanto na banheira. Isso não sendo suficiente existem ainda medicações que podem ser aplicadas pelo médico anestesista. A dor pode ser resolvida sim, ela não precisa ser um caminho que desvie a mulher para a cesárea. A grande questão é que têm hospitais que não oferecem essa possibilidade, que não existe esse serviço de anestesia para essa mulher, ou seja, a estrutura que está falha. E tem hospitais que até teriam a anestesia, que não é oferecida. Mas têm também locais onde essa possibilidade existe e a mulher é obrigada a tomar a anestesia. Eu já trabalhei em um hospital assim, não tinha a opção da mulher não tomar a anestesia. Eu já fui mandado para o conselho de ética de um hospital porque pela terceira vez eu tinha assistido a um parto normal sem anestesia, ‘como a mulher tinha direito a anestesia e você não aplicou?’ Ela não queria a anestesia.
Blog: Mais uma vez se desconsidera o protagonismo da mulher.
Bráulio: E tem uma coisa ainda mais grave quando o assunto é anestesia. Há números mostrando que as mulheres negras têm menos acesso à anestesia porque se acredita que elas podem ser mais fortes e ‘aguentar mais’ a dor. Outra coisa cruel é que se houver uma laceração de parto se faz suturas sem anestesia local, acreditando que essa mulher vai aguentar.
Blog: Então a violência obstétrica ainda é mais cruel com as mulheres negras?
Bráulio: Sim, e há números mostrando isso. Nesse ambiente acredita-se que as mulheres negras “são mais fortes” e que elas “aguentariam isso”. Isso mostra que elas têm menos acesso à analgesia, o que é muito cruel.
Blog: E aquela manobra feita por médicos e enfermeiros que ’empurra’ a barriga da mulher é violência obstétrica?
Bráulio: Sim, e o nome dessa manobra é Kristeller – e ela tem alguns séculos na história da obstetrícia, foi criada em um momento em que se acreditava que o bebê não podia ficar parado no canal de parto e deveria nascer o mais rápido possível. Se olhavam para os partos naturais rápidos e se via que eram partos muito bons, enquanto os partos mais demorados davam mais problemas. E nessa época, e eu estou falando do século XIX até a metade do século XX, entendia que se acelerasse os partos diminuíam os problemas. Então não só essa manobra de Kristeller, quanto outras medidas, como colocar ocitocina em todo mundo, estourar a bolsa de todo mundo, cortar o períneo da mulher, a episiotomia, usar fórceps de rotina, eram usadas para acelerar esse parto, diminuindo as chances de faltar oxigênio para esse bebê. Para aquele momento era ‘o que tinha’, inclusive no século XX a mortalidade das mães e dos bebê durante o parto caiu muito. Porém, com o tempo, com a globalização das informações e com trabalhos que puderam ser feitos com mais casos, juntando vários centros de pesquisa de todo o mundo, foram descobrindo que a aceleração dos partos muitas vezes era o problema, não temos que acelerar todos os partos. E há manobras que o custo-benefício não compensa, a manobra de Kristeller é uma delas. Ela tem uma eficiência mecânica muito grande – se você empurrar o bebê sai. Mas às custas do quê e de quais sequelas? A manobra de Kristeller pode fraturar a costela da mãe, pode romper o fígado, o baço, o útero, a bexiga, causar uma hemorragia interna da mãe e, no caso do bebê, pode ocasionar edema cerebral, hemorragia cerebral, será que compensa? Tanto que a manobra de Kristeller foi proscrita na medicina.
Blog: E a episiotomia, esse corte no períneo da mulher, que era feito em todos os partos normais – em mim, por exemplo ele foi feito. Ele é realmente necessário?
Bráulio: A episiotomia, corte para facilitar a saída do bebê, teve seu papel na história da obstetrícia, porém a gente luta para que ela seja abolida. Ela servia como ‘proteção’ à manobra de Kristeller, já que se você empurrava a barriga da mãe havia mais chances de laceração de quarto grau, daquelas que se emendava a vagina com o ânus. Mas quando se estudou o período expulsivo do parto, em trabalhos do final do século XX e de início do século XXI, quando se descobriu que o bebê pode ficar até 4 horas ‘parado’ no canal de parto, ou seja, se descobriu que não é preciso acelerar os partos dessa forma. Tirando a manobra de Kristeller da cena, já se diminui muito o índice de lacerações e a episiotomia vai perdendo sua necessidade. Eu faço parte de um grupo que defende que a episiotomia seja abolida.
Blog: Mas muita gente faz ainda.
Bráulio: Muita gente faz, eu não acredito que fazem mais de rotina como antigamente, para todos os casos. No meu caso faz 8 anos que eu não pratico mais episiotomia e eu considero que meu trabalho obstétrico melhorou muito por conta disso. E alguns colegas me perguntam, ‘nossa, mas você não tem várias lacerações?’. Em geral a gente tem 20% de lacerações, que são menores do que se fosse feita a episiotomia, ou seja, 80% das mulheres não têm nem laceração e nem o corte da episiotomia.
Blog: Qual o papel dessas mulheres na mudança que está sendo observada no parto?
Bráulio: Quem puxou esse movimento todo do parto humanizado foi a mulher que, no final do século XX, começou a dizer “gente, muito obrigada, o parto melhorou bastante desde o tempo da minha bisavó em relação à mortalidade, vocês inventaram algumas intervenções necessárias, porém não há um jeito melhor para isso? Não tem uma forma de usar tudo só se for necessário? Eu quero decidir sobre meu parto, eu quero saber para que serve cada coisa.” O movimento das mulheres fez com que os profissionais começassem olhar para essa demanda das mulheres, que quiseram o protagonismo de volta e que propõem que seja uma decisão em conjunto. E muitas pessoas perguntam, ‘como a mulher vai decidir algo técnico, ela vai ter que fazer um curso para isso?’ Claro que não. Se você for na loja de carros você tem capacidade de escolher qual você quer, não precisa virar engenheiro mecânico para decidir sobre o carro. É só mostrar os prós e contras de todas as opções e a mulher é capaz de decidir o que quer.
Blog: Mas todo esse processo da mulher de decidir o que quer, fazer um plano de parto e dizer ‘não’ a uma cesariana gera uma reação da classe médica, não gera?
Bráulio: Sim. Quando a gente muda um paradigma, quem quer ficar na zona de conforto se incomoda. Quem já entendeu essa mudança, que o centro do parto tem que ser a mulher e não o médico, quem já virou essa ‘chavinha’ percebe que tudo passar a ser óbvio depois disso.
Blog: Existe uma relação entre violência obstétrica e o alto número de cesarianas no Brasil?
Bráulio: Sim, existe. Do lado do SUS houve um tempo em que o parto estava sendo muito violento com a mulher e o setor privado abriu uma porta grande para as mulheres fazerem cesárea com hora marcada. As mulheres pensaram, ‘vou ficar no SUS, vão me negar anestesia, não deixar entrar acompanhante, cortar meu períneo, empurrar minha barriga e meu bebê ainda parar na UTI depois?’ Aí a cesárea eletiva surgiu como uma solução, inclusive muitos médicos têm essa visão porque só conhecem esse parto violento. Eu também achava o parto normal muito violento e via a cesárea eletiva como solução. Realmente, surgiu essa demanda grande de cesáreas marcadas e o Brasil deslanchou no mundo como sendo o campeão mundial de cesáreas. Mas agora o momento é: tá, temos um parto mais violento no SUS, temos muitas cesáreas marcadas no suplementar, os dois lados têm violência obstétrica, cada um de um tipo. No hospital público pelo que já citamos e no setor suplementar muitas vezes porque a mulher não tem acesso a um parto normal quando quer ter um parto normal. E qual a solução para essa questão toda? A solução se chama parto humanizado, se chama combate à violência obstétrica, entender o que está levando a esse cenário e minimizar esse fatores.
Fonte: Estadão