A Justiça de Mato Grosso suspendeu a liminar que garantia à estudante transexual, Rafaela Rosa Crispim, de 20 anos, moradora de Cuiabá, o direto de passar por cirurgias de redesignação sexual e feminização facial por meio do plano de saúde. A decisão se baseia na argumentação da operadora de plano de saúde de que Rafaela cometeu fraude por não informar sua condição de transexualidade, classificada no processo como patologia.
“A recorrida omitiu informações na contratação do plano de saúde ofertado, já que ela encontra-se em acompanhamento multidisciplinar há mais oito anos, todavia, não informou a existência de qualquer patologia preexistente que já havia sido diagnosticada”, diz trecho do pedido da operadora.
Rafaela Rosa Crispim nasceu com o sexo biológico masculino, mas passa por transição para o feminino desde os 3 anos. Ela luta para conseguir as cirurgias desde 2019, quando entrou com o primeiro pedido judicial.
Segundo a operadora de saúde, Rafaela “aderiu ao plano sem sequer mencionar que possuía referida patologia, ingressando com ação de obrigação de fazer em maio de 2021, almejando em caráter de tutela de urgência, a liberação de procedimentos, cujas informações omitiu e fraudou no momento da contratação do plano de saúde”, diz outro trecho.
Ao G1, Rafaela contou que recebeu a nova decisão com bastante pleperxidade.
“Não esperávamos que tal argumento tão infeliz seria usado e pior, acolhido pela Justiça em plano século 21. Um retrocesso de direitos. Penso que, a singularidade de cada ser humano não é pretexto para a desigualdade de dignidade e direitos, principalmente o direito mais fundamental como a vida e a saúde”, afirma.
Rafaela acrescenta que a discriminação contra uma pessoa atinge igualmente toda a sociedade.
Através da advogada, a jovem entrou com recurso contra a suspensão da liminar, justificando que a transexualidade não é categorizada como doença. E que mesmo assim, informou a condição desde o início.
“A Organização Mundial de Saúde (OMS) oficializou durante a 72º Assembleia Mundial da Saúde, em Genebra, a retirada da classificação da transexualidade como transtorno mental da 11º versão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde (CID). Pela nova edição, a transexualidade sai, após 28 anos, da categoria de transtornos mentais para integrar o de ‘condições relacionadas à saúde sexual’ e é classificada como ‘incongruência de gênero’, diz trecho do recurso.
Rafaela Rosa Crispim é defensora de direitos humanos e ativista LGBT em Cuiabá — Foto: Rafaela Crispim/Arquivo pessoal
Além disso, Rafaela afirma, no recurso, que no dia da contratação do plano de saúde, ela passou por uma avaliação médica, quando informou ao profissional da saúde que era transexual.
“Ele atestou que não havia comorbidades naquele momento. O médico sabia que ela era pessoa transexual em tratamento desde os 3 anos de idade, mas não julgou que seria necessária uma avaliação especializada e não informou sobre colocação de qualquer CID na declaração. Pelo contrário, orientou a colocar não”, informa a advogada.
Segundo a defesa, a argumentação do plano de saúde não tem não deve ser considerada, por não foi demonstrado pela operadora ter exigido qualquer exame antes da contratação, nem mesmo a intensão da consumidora em omitir qualquer fato considerado relevante.
Associação Nacional de Travestis e Transexuais a Aliança Nacional LGBTI+ emitiu nota de repúdio.
“Mais um triste episódio de tentativa de patologização da transexualidade e exigimos uma resposta à altura, com todo o rigor da lei, para que casos como este não voltem a se tornar comuns em nosso dia a dia. A transfóbia é estrutural e estruturante em nossa sociedade e precisamos todos reagir a ela., diz trecho da nota.
A associação pediu às autoridades competentes a apuração em relação aos atos praticados
“Que as devidas providências possam ser adotadas no sentido de que mudanças estruturais possam acontecer e se traduzir no efetivo respeito aos direitos de todas as pessoas LGBTI+, para que sejam reconhecidas e respeitadas na sua humanidade e dignidade”
Luta pelas cirurgias
Rafaela, que também é defensora de direitos humanos e ativista LGBT, contou ao G1 que luta para conseguir as cirurgias desde 2019, quando entrou com o primeiro pedido judicial. Junto com a amiga e advogada Rafaela Borensztein ela tenta conquistar o direito de pessoas trans terem acesso a cirurgias de implante de silicone e correção das cordas vocais via plano de saúde.
Em junho de 2020, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) determinou que o plano de saúde cobrisse as cirurgias de tireoplastia – procedimento que deixa a voz mais fina – e de mamoplastia – adequação da caixa torácica para modelação dos seios – em Rafaela.
Já no dia 6 de maio, outra decisão do TJMT permite que a jovem faça as cirurgias de readequação de sexo.
Transgênero é a pessoa que se identifica com o gênero oposto ao qual ela nasceu. Não há relação com orientação sexual. — Foto: Alexandre Mauro / G1
A jovem passou cerca de 8 anos em acompanhamento multidisciplinar e teve os procedimentos cirúrgicos indicados em caráter de urgência. Apesar disso, o plano de saúde negou a cobertura, justificando que Rafaela estava em período de carência contratual.
No entanto, na decisão, a juíza Vandymara Paiva Zanolo afirma que a jovem necessita se submeter ao tratamento indicado com urgência – devido ao quadro psiquiátrico grave –, “e, sendo assim, a cobertura é obrigatória para as operadoras de planos de saúde, haja vista que a carência máxima admitida para tratamentos nesses casos é de 24 horas”.
As cirurgias que Rafaela passariam ccustam, em média, R$ 175 mil, fora passagens, hospedagens e medicamentos. Os procedimentos seriam realizados em São Paulo, mas ainda não há data definida, segundo a estudante.
No Brasil, apenas cinco hospitais prestam esse serviço de acompanhamento para a população, e ficam em São Paulo, Porto Alegre, Rio do Janeiro, Pernambuco e Goiás. A espera no país para iniciar o processo pode levar até cinco anos.
Transição
Rafaela começou a transição aos 3 anos, quando passou a ter acompanhamento psicológico. Segundo ela, foram cerca de 11 anos tratando o psicológico até ser “diagnosticada com desvio psicológico permanente de identidade sexual”, e iniciar o tratamento hormonal, aos 14 anos.
“Na época morava em Sinop – no norte do estado – então o atendimento era precário. Quando completei 16 anos pedi minha emancipação e fui estudar e me tratar em Curitiba. Após concluir o tratamento, retornei para MT e iniciei a faculdade de direito. Desde então venho focando minha especialização no atendimento das pessoas LGBT e saúde”, contou.
Em agosto de 2018, a jovem conseguiu os documentos pessoais após o Supremo Tribunal Federal (STF) permitir que a pessoa transsexual mudasse o nome e o gênero no registro civil mesmo sem ter feito a cirurgia de redesignação de sexo.
Agora com os novos procedimentos cirúrgicos, Rafaela daria mais um passo na conquista dos direitos LGBT.
Legislação
Em 2020 novas regras para a cirurgia de transição de gênero foram aprovadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). A resolução amplia o acesso à cirurgia e também ao atendimento básico para transgêneros.
A norma reduziu de 18 para 16 anos a idade mínima para o início de terapias hormonais e define regras para o uso de medicamentos para o bloqueio da puberdade. Procedimentos cirúrgicos envolvendo transição de gênero estão proibidos antes dos 18 anos. Antes era preciso esperar até os 21 anos.
Procedimento pelo SUS
É a portaria nº 2.836 de dezembro de 2011, que instituiu a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, que trata sobre o direito da cirurgia de readequação de sexo e o uso de hormônios.
O objetivo é geral da portaria é promover a saúde integral da população LGBT.
Para realizar a cirurgia de readequação de sexo pelo SUS, o acesso inicial é via Unidade Básica de Saúde (UBS).
Após esse primeiro contato, é função da rede estadual direcionar essa pessoa para um dos centros de referência habilitados pelo Ministério da Saúde que realizam o procedimento.
Primeira cirurgia no Brasil
A primeira cirurgia no Brasil foi anterior a qualquer resolução oficial. Ela foi feita em 1971 pelo cirurgião Roberto Farina, que chegou a ser condenado por isso. Farina também fez a primeira cirurgia em um homem transexual no Brasil – o paciente foi o psicólogo e escritor João Nery, autor do livro “Viagem solitária – memórias de um transexual 30 anos depois”.
Já a primeira cirurgia de redesignação sexual na rede pública no Brasil foi realizada em 1998, no Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas. Na época, o procedimento só foi possível após a resolução 1482/97 do CFM. A primeira mulher trans a ser operada pela rede pública de saúde foi Bianca Magro, em 1998.
Fonte: G1