Ofensa ao princípio da dignidade humana.
A 4ª Vara Cível de São Caetano do Sul condenou uma empresa de plano de saúde a arcar com os custos de cirurgia de transição de gênero a uma pessoa transexual. A ré também terá que cobrir os custos da internação, anestesista e dos materiais a serem utilizados.
Consta dos autos que o autor, beneficiário do plano de saúde da empresa-ré, já fez alteração de seu registro civil para o sexo masculino e obteve prescrição médica para realizar cirurgia transexualizadora. A empresa se recusou a cobrir o procedimento, alegando que se trata de cirurgia estética, sem qualquer doença ou trauma físico que justifique a obrigatoriedade da cobertura, conforme previsto em contrato.
O juiz José Francisco Matos afirmou, com base em norma do Conselho Federal de Medicina e nos laudos médicos e psicológicos apresentados nos autos, que a intervenção cirúrgica em questão não é meramente estética, mas um procedimento fundamental para que a pessoa transexual possa adequar seu corpo à sua identidade de gênero. “Não há que falar-se em exclusão de responsabilidade contratual por parte da ré, uma vez que a transexualidade do autor é incontroversa, estando ele diante de incongruência de gênero, motivo pelo qual o procedimento ora pleiteado garantirá sua dignidade física e psíquica, harmonizando a classificação biológica do seu sexo com o seu gênero, pelo qual é visto socialmente”, escreveu o magistrado na sentença. “Reitera-se, portanto, que a cirurgia não é meramente estética e sim funcional, uma vez que se destina à adequação de gênero do autor, com indicação médica e psicológica”.
Além disso, o juiz ressaltou que, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, o contrato de adesão ao plano de saúde “deve ser interpretado pró-aderente, o que significa que as cláusulas obscuras devem ser aclaradas e devem prevalecer os princípios da boa-fé e da finalidade contratual, contra o abuso da exploração mercantil da medicina conveniada”.
“Impor aos transexuais limites e restrições indevidas ofende o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, de forma ampla, como já mencionado”, finalizou José Francisco Matos.
Cabe recurso da sentença.
Fonte: Jornal JURID
Opinião, por Regina Helena da Silva, advogada da Areal Pires Advogados
A realização da cirurgia de redesignação sexual tem papel fundamental nos trâmites legais enfrentados pela população Trans, como a mudança de nome e sexo no registro civil.
Atualmente, as pessoas que querem se submeter às cirurgias pelo Sistema Único de Saúde (SUS) precisam entrar em uma fila de espera. Ocorre que a fila para participar deste processo é enorme – a espera pode passar de 10 anos – e, por esse motivo, o que muitas pessoas questionam é se as seguradoras de plano de saúde poderiam realizá-lo.
Inicialmente, a transgenitalização precisa ser entendida como uma forma de tratamento que visa à melhoria da vida do indivíduo, tendo em vista que é de um sofrimento gigantesco enxerga-se em um corpo que não te pertence, além das consequências causadas pelo processo de hormonização.
Embora o contrato assinado não tenha previsão de cobertura da cirurgia, deve prevalecer o direito constitucional do segurado a ver a sua saúde protegida.
Dessa forma, o judiciário vem entendendo que a utilização de hormônios pode trazer enfermidades como o câncer. Sendo assim, por esse ponto de vista, os planos de saúde seriam obrigados a arcar com as cirurgias.
Outrossim, há diversos julgados que demonstram que a cirurgia de redesignação sexual objetiva harmonizar a categoria biológica do sexo ao papel social de gênero pelo indivíduo adotado. Tratando-se, portanto, de cuidado com a saúde sexual do indivíduo, que, sendo compelido a não ser o que é em termos de gênero, pode sofrer discriminação nas mais diversas áreas da vida, via restrição ao acesso a serviços básicos, como saúde, além da violação de direitos fundamentais relacionados ao valor maior da dignidade da pessoa humana.
Em um caso julgado recentemente, no processo nº 1000406-60.2020.8.26.0565, a 4ª Vara Cível de São Caetano do Sul condenou uma empresa de plano de saúde a arcar com os custos de cirurgia de transição de gênero de uma pessoa transexual. A Ré também deverá cobrir os custos da internação, anestesista e dos insumos necessários.
A Empresa- Ré se recusou a cobrir o procedimento, alegando que se trata de cirurgia estética, sem qualquer doença ou trauma físico que justifique a obrigatoriedade da cobertura, conforme previsto em contrato.
Ora, a transgenitalização é um procedimento cirúrgico já coberto e garantido aos pacientes SUS. Na Portaria nº 2.803/2013, o Ministério da Saúde define quais procedimentos devem ser cobertos durante o processo de redesignação sexual: acompanhamento clínico e ambulatorial pré e pós-operatório, tratamento hormonal, orquiectomia bilateral, neocolpoplastia, tireoplastia, amputação de órgãos genitais, mastectomia, histerectomia, colpectomia, meatoplastia, meatotomia, fistulectomia, plástica mamária reconstrutiva e cirurgias estéticas para correções complementares.
Além disso, a Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/98) assegura que o plano-referência de todas as operadoras deve compreender a cobertura médico-ambulatorial e hospitalar das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde da Organização Mundial de Saúde – a CID 10.
Embora a transexualidade não seja uma doença, assim como a gestação, ela se encontra inserida na CID 10-F64. Isto significa que, tomando como referência os procedimentos que envolvem a adequação sexual cobertos pelo SUS (Portaria MS nº 2.803/2013), as pessoas trans beneficiárias de planos de saúde podem ser atendidas pelos seus médicos particulares porque existente a codificação do evento que autoriza seu atendimento médico (CID 10), devendo o profissional ainda observar as demais exigências legais: acompanhamento de equipe multidisciplinar, idade mínima de 18 anos para a terapia hormonal, idade mínima de 21 anos para a cirurgia de transgenitalização e assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido, no qual haja a previsão expressa dos riscos e efeitos colaterais dos procedimentos.
Portanto, a transexualidade é uma questão de saúde sexual, as pessoas trans possuem notadamente seu direito à transgenitalização respaldados no Princípio da Dignidade Humana, que é um dos fundamentos da Constituição da República do Brasil, o que as garante o acesso a seus direitos como uma forma de adequação sexual para se ter uma vida digna.
No atual momento de flagrante aumento da violência contra a população LGBTI, a recente decisão em tela é uma vitória necessária nesses tempos sombrios.