Em 24 de setembro de 2012, a Folha de São Paulo divulgou notícia a respeito da preocupação com o lobby feito pelas operadoras de saúde que patrocinam eventos realizados pelo Poder Judiciário. Os casos divulgados são de um júri simulado sobre a judicialização da saúde, realizado na Escola Paulista de Magistratura, em São Paulo, evento que foi aberto por dois dirigentes da Unimed, operadora de plano de saúde que vem patrocinando encontros com magistrados para discussão do assunto. O outro caso foi de um congresso, realizado em agosto de 2012, com participação de cem magistrados, que se reuniram, num fim de semana, em hotel no Guarujá, com as despesas pagas por operadoras de planos de saúde.
Na esfera pública, constata-se grande resistência do Poder Público ao cumprimento do art. 196 da Constituição Federal, ao argumento de que a judicialização da saúde é uma distorção do conceito da universalidade da saúde, como afirmou Giovanni Guido Cerri, Secretário de Estado da Saúde no Estado de São Paulo, em entrevista concedida ao Estadão, em 02 de dezembro de 2011.
Lobby, tentativa de doutrinação e interpretação das leis vigentes à parte, o fato é que a judicialização da saúde é um tema que vem preocupando todos os setores da sociedade envolvidos no assunto, tanto na esfera pública quanto na privada.
Planos de saúde de um lado e consumidores do outro. Estado versus cidadão. Há culpados no aumento da demanda de ações envolvendo sistema de saúde?
No Brasil, há dois tipos de assistência à saúde: a integral, que deve ser feita pelo Estado, em decorrência do direito à saúde previsto constitucionalmente, e a suplementar, prestada por operadoras de saúde autorizadas pelo Governo Federal, através da ANS, a consumidores interessados na contratação desse serviço, sendo a relação estabelecida entre as empresas e esses consumidores regida pelo Código de Defesa do Consumidor.
Nesse artigo, pretende-se focar somente na relação entre consumidores e planos de saúde.
Sendo a relação submetida às normas e princípios do Código do Consumidor, não é possível que se pretenda, de uma forma míope, simplista e distorcida, culpar o consumidor pelo aumento da demanda de ações judiciais que discutem a fornecimento dos produtos e serviços das operadoras de saúde.
O usuário do serviço de assistência à saúde suplementar é vítima de um sistema mercantilista de venda da assistência ao seu maior bem: a vida. É, sem dúvida, a parte mais fraca dessa relação, ou seja, é a parte vulnerável, muitas vezes hipervulnerável (vocábulo criado pelo ilustre Ministro Antônio Herman Benjamin), pois além de consumidor, muitas vezes, é idoso e doente. Sendo assim, merece a proteção do Estado contra práticas comerciais abusivas e desleais perpetradas pelas operadoras de saúde, que, sob o manto de um objeto contratual de resguardo da assistência à saúde do contratante, redigem cláusulas ambíguas e abusivas, que colocam o consumidor em extrema desvantagem e que, ao final das contas, são potestativas, utilizadas ora para conceder ora para negar cobertura a tratamentos indispensáveis à garantia, não só da integridade física, mas também da dignidade do consumidor.
A relação contratual entre consumidor e plano de saúde deve ser analisada sob o prisma da função social do contrato e da boa fé, essa última em seu sentido mais amplo, segundo magistério de ALÍPIO SILVEIRA, sendo “a consciência de não prejudicar a outrem em seus direitos”.
Ninguém melhor que Cláudia Lima Marques para ensinar a respeito da função social do contrato e boa-fé nas relações de consumo.
A respeito da função social do contrato, doutrina: “A função social do contrato, reconhecida na nova teoria contratual, a transforma de simples instrumento jurídico para movimento das riquezas do mercado em instrumento jurídico para a realização dos legítimos interesses do consumidor, exigindo, então, um regramento legal e rigoroso e imperativo de seus efeitos. A manifestação de vontade do consumidor é dada almejando determinados fins, determinados interesses legítimos. A ação dos fornecedores, a publicidade, a oferta, o contrato firmado, criam no consumidor a expectativa, também, legítimas de poder alcanças esses efeitos contratuais. No sistema tradicional, seus intentos poderiam vir a ser frustrados, pois o fornecedor, elaborando unilateralmente o contrato, o redigia de forma mais benéfica a ele, afastando todas as garantias e direitos contratuais, que a lei adjetiva civil permitisse (direitos disponíveis). No sistema do CDC leis imperativas irão proteger a confiança que o consumidor depositou no vínculo contratual, mais especificamente na prestação contratual, na sua adequação ao fim que razoavelmente dela se esperam, irão proteger também a confiança que o consumidor deposita na segurança do produto ou do serviço colocado no mercado.”
Já a boa-fé é definida por Cláudia Lima Marques como: “(…) uma atuação “refletida”, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando seus interesses legítimos, seus direitos, respeitando os fins do contrato, agindo com lealdade, sem abuso da posição contratual, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, com cuidado com a pessoa e o patrimônio do parceiro contratual, cooperando para atingir o bom fim das obrigações, isto é, o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses legítimos de ambos os parceiros. Trata-se de uma boa-fé objetiva, um paradigma de conduta leal, e não apenas da boa-fé subjetiva, conhecida regra de conduta subjetiva do artigo 1444 do CCB. Boa-fé objetiva é um standard de comportamento leal, com base na confiança, despertando na outra parte co-contratante, respeitando suas expectativas legítimas e contribuindo para a segurança das relações negociais”.
Analisando a questão sob essa ótica, fatalmente é de se concluir que a judicialização da saúde tem como origem o deliberado descumprimento das leis por partes das operadoras de saúde, que insistem no pacta sunt servanda, já há muito mitigado pela doutrina e jurisprudência (especialmente nas relações de consumo), que o define como princípio pelo qual o contrato obriga as partes desde que seja respeitados os limites fixados pela lei.
Assim, é direito do consumidor, previsto no CDC, não somente a revisão de contratos de consumo, especialmente os de adesão, no qual não há vontade manifestada pelo contratante e somente aderência ao pacto, como também a modificação de cláusulas que estabeleçam prestações desproporcionais, frequentemente presentes em contrato de planos de saúde.
Não se pode deixar de levar em consideração que a democratização do acesso à informação e o aumento da renda da população brasileira reflete necessariamente de forma positiva na consciência do cidadão que se depara com uma conduta abusiva do plano de saúde, tem conhecimento dos seus direitos, não se conforma e decide lutar por Justiça.
Diante desse impasse, a judicialização da saúde está sendo debatida no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que instituiu o Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde, com o objetivo de monitorar as demandas relativas à assistência à saúde. Ao Fórum foi atribuída a responsabilidade de elaborar estudos e propor medidas e normas para o aperfeiçoamento de procedimentos e a prevenção de novos conflitos na área da saúde e, ainda esse ano, pretende produzir enunciados a serem utilizados pelos juízes de todo o País em decisões sobre fornecimento de medicamentos, cobertura de planos de saúde e outros temas mais frequentemente levados à Justiça, na expectativa de se garantir à sociedade resposta justa aos conflitos que tem como pano de fundo o bem maior do ser humano: a vida.
Melissa Areal Pires – setembro 2012