Por Melissa Areal Pires, advogada especialista em Direito Médico e à Saúde – 17/6/2020
A Doença Falciforme é uma das doenças hereditárias mais prevalentes no Brasil, atrás apenas da Síndrome De Down, especialmente em regiões que receberam grande quantidade de escravos africanos, chegando a aproximadamente 3.500 novos casos por ano.
Trata-se de uma alteração genética, caracterizada por um tipo de hemoglobina mutante designada por hemoglobina S (ou Hb S) que provoca a distorção dos eritrócitos. Embora seja uma doença crônica é hereditária, infelizmente o cenário é de grande desinformação sobre a doença.
Segundo informações da ONU, se uma pessoa recebe um gene do pai e outro da mãe para produzir a hemoglobina S, certamente nascerá com um par de genes SS e, assim, terá anemia Falciforme, por isso que se considera uma doença genética e hereditária. Se receber de um dos pais, o gene para hemoglobina S e do outro o gene para hemoglobina A, a #criança não terá #doença e sim o Traço Falciforme (AS), e, assim, não precisará de #tratamentoespecializado, mas deve ser informado que, se tiver filhos/filhas com outra pessoa que também herdou o traço, poderá ter uma criança com Anemia Falciforme.
O gene que produz a hemoglobina S pode combinar-se com outras alterações hereditárias das hemoglobinas, como C, D, E, Beta e Alfa Talassemias, dentre outras, gerando combinações que se apresentam com os mesmos sinais e sintomas da combinação SS e são tratadas da mesma forma. O conjunto de combinações SS, SC, SD, SE, S/Beta Talassemia, S/Alfa Talassemia denomina-se DOENÇA FALCIFORME.
A hemoglobina S faz com que as hemácias adquiram a forma de foice (falcizadas) em ambiente de baixa oxigenação, não exercendo a função de oxigenar o corpo de modo satisfatório. As #hemácias #falcizadas circulam com dificuldade na corrente sanguínea e podem provocar obstrução vascular. Como consequência, as pessoas com essa doença apresentam dores intensas, isquemia, necrose, disfunção e danos irreversíveis a tecidos e órgãos, além de uma anemiacrônica.
Desde 2001, o diagnóstico da Doença Falciforme é feito logo ao nascimento, por meio do Teste do Pezinho, garantindo, assim, o diagnóstico precoce e permitindo o encaminhamento imediato para o médico hematologista pediátrico, que promoverá o acompanhamento do paciente em um centro de referência com equipe multidisciplinar, o que certamente contribuirá para uma melhor evolução clínica e evitará as maiores e mais complicações da doença.
A ONU alerta que os programas populacionais de Doenças Falciformes só têm impactos sociais e éticos se incorporarem suas ações no diagnóstico precoce que otimiza a eficácia das ações preventivas e profiláticas na redução da morbi-mortalidade, por intermédio do acompanhamento realizado por equipe multiprofissional; em cuidados sociais que cada pessoa com a doença requer; acesso às informações/orientações genéticas aos familiares e acesso aos medicamentos essenciais.
Há um outro alerta muito importante no sentido de que os cuidados profiláticos representam a essência do tratamento até o quinto ano de vida, período de maior ocorrência de óbitos e complicações graves. A Doença Falciforme é sistêmica, como a Diabetes, e atinge diversos órgãos, tendo um grande impacto sociocultural, já que atinge com mais prevalência os negros.
O SUS disponibiliza tratamento, inclusive Transplante de Medula Óssea (TMO). Todos os estados brasileiros devem possuir, pelo menos, um centro especializado para atender a pessoa com Doença Falciforme, que deve ser identificada em um programa de atenção integral.
Todos os #medicamentos que compõem a rotina do tratamento são disponibilizados no Sistema Único de Saúde (SUS). Os que integram a farmácia básica são: ácido fólico (de uso contínuo), penicilina oral ou penicilina injetável (obrigatoriamente até os cinco anos de idade), antibióticos, analgésicos e antiinflamatórios (nas intercorrências). A hidroxiuréia, os quelantes de ferro, o dopller transcraniano e transfusões sanguíneas integram os medicamentos e procedimentos para atenção especializada. O rigoroso programa de vacinação estabelecido no calendário nacional também é outro importante fator de redução da #mortalidadeinfantil por infecções, pois as crianças com a doença falciforme possuem um risco aumentado em 400 vezes em relação à população em geral.
Segundo informações prestadas pelo Ministério da Saúde, houve, em 2018, a ampliação da faixa etária para indicação de transplante de medula aparentado para tratamento da doença falciforme. Assim, a idade passou a não ser mais critério de restrição para esse transplante, que é o único método de curar a doença pelo SUS.
A partir de 2018, portanto, pessoas também acima de 16 anos passaram a poder fazer o transplante alogênico aparentado de medula óssea, de sangue periférico ou de sangue de cordão umbilical, do tipo mielo ablativo, para tratamento da doença falciforme. Antes, só podiam fazer o transplante, pessoas abaixo de 16 anos, pois não havia dados científicos para atestar segurança e eficácia do procedimento para maiores dessa idade.
Para o paciente portador dessa doença, que deseja contar com a assistência de um plano de saúde ou seguro saúde, é preciso estar alerta no momento da contratação do serviço, pois, para doenças preexistentes, a lei 9.656/98 autoriza a operadora de plano de saúde a exigir, do consumidor, o cumprimento da Cobertura Parcial Temporária, o que significará que, pelo período de 2 anos após a contratação, o paciente não terá cobertura para o tratamento.
Isso foi o que decidiu, em 29 de janeiro de 2020, o Desembargador Werson Franco Pereira Rego, ao julgar recurso de apelação de n. 0026038-94.2017.8.19.0213, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:
DIREITO DO CONSUMIDOR. SAÚDESUPLEMENTAR. PLANO DE SAÚDE. NEGATIVA DE EXAME, SOB ALEGAÇÃO DE CUMPRIMENTO DE PRAZO CARÊNCIA EM VIRTUDE DE DOENÇA PREEXISTENTE. PRETENSÃO CONDENATÓRIA EM OBRIGAÇÃO DE FAZER, CUMULADA COM COMPENSATÓRIA POR DANOS MORAIS. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. IRRESIGNAÇÃO DA PARTE AUTORA.
1. Insurge-se a Apelante contra a r. sentença, que julgou improcedentes os pedidos autorais, sob o argumento de que a mesma não comprovou a negativa de autorização, bem como a urgência do procedimento, além de não demonstrar estar adimplente com suas obrigações.
2. O Direito do Consumidor resgatou a dimensão humana do consumidor na medida em que passou a considerá-lo sujeito especial de direito, titular de direitos constitucionalmente protegidos.
3. Vida, saúde e segurança são bens jurídicos inalienáveis e indissociáveis do princípio universal maior da intangibilidade da dignidade da pessoa humana. É direito básico do consumidor, nos termos do artigo 6º, I, da legislação consumerista, a proteção de sua incolumidade física.
4. As cláusulas estabelecidas pela operadora, para não serem consideradas abusivas – à luz do Código de Proteção Defesa do Consumidor e da Lei nº 9.656/98 – devem se conformar aos parâmetros estabelecidos pelos supramencionados diplomas legais e pela agência reguladora do segmento – a ANS.
5. O ponto nodal da lide gira em torno da validade da cláusula contratual que estabelece prazos de carência, com base na qual a parte Ré sustentou a recusa do exame de #ressonânciamagnética do coração.
6. Entende-se por carência o período seguinte à contratação do plano/seguro de saúde em que o contratante não teria direito a certas e determinadas coberturas. Nos casos de emergência e de urgência, nos termos da Lei nº 9.656/98, o prazo máximo de carência é de 24 horas. Por sua vez, a cobertura parcial temporária corresponde a uma restrição na cobertura do plano de saúde, que pode ser imputada pelas operadoras no caso de Doença ou Lesão Preexistente – DLP, com duração máxima de 24 meses a partir da assinatura ou adesão contratual, restrita a cirurgias, leitos de alta tecnologia e Procedimentos de Alta Complexidade – PAC, diretamente relacionados à doença ou lesão preexistente declarada pelo beneficiário ou seu representante legal.
7. No caso concreto, a Autora declarou ser portadora de cardiopatia e anemia falciforme quando da contratação do plano de saúde (fl. 32/33). Destarte, forçoso o reconhecimento de que se está diante de situação de doença preexistente, sabida e conhecida da Autora, pelo que deveria cumprir o período de carência previsto contratualmente para PAC – procedimentos de alta complexidade (fls. 27/39). 8. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.”