Segundo especialistas, liminar deve aumentar pressão por cálculos mais transparentes
RIO — Após três anos com reajustes de 13,5% nas mensalidades dos planos de saúde individuais, a Justiça fixou em 5,72% o teto para o aumento desses contratos, únicos com correção regulada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O percentual corresponde ao índice da inflação de saúde no país, medido pelo IPCA, apurado pelo IBGE. Conforme antecipado pelo colunista do GLOBO Ancelmo Gois, a ANS propôs reajuste de 10% para este ano. O anúncio formal da taxa, no entanto, ainda não foi feito pela agência, que aguardava parecer do Ministério da Fazenda.
Apesar de não ter sido notificada, a ANS já informou que irá recorrer da decisão judicial. Segundo especialistas, a determinação da Justiça vai dar início a uma discussão sobre a forma como é calculado o aumento anual pela agência, e pode ter reflexo também sobre os planos coletivos, apesar de eles não estarem contemplados na ação.
A liminar foi concedida nesta quarta-feira, pela 22ª Vara Cível Federal de São Paulo, em resposta à ação civil pública movida pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), que se baseia em relatório divulgado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em março. O TCU aponta distorções, abusividade e falta de transparência na metodologia usada pela ANS para calcular o percentual máximo de reajuste de 9,1 milhões de planos individuais, uma fração do total de 47,4 milhões de contratos da saúde suplementar no Brasil. A ANS tem pelo menos até a metade do segundo semestre para responder aos questionamentos do TCU.
Primeira ação movida pelo Idec
Na decisão, o juiz Flavio Siqueira Junior reconhece que o constante avanço da tecnologia pede reajuste por índice diferenciado daquele que mede a inflação geral. Ele pondera, contudo, que a ANS, como órgão regulador, não pode autorizar aumento que inviabilize o custeio pelos consumidores. A decisão abre a possibilidade de uma audiência de conciliação e de assinatura de termo de ajuste de conduta para adoção de metodologia que não comprometa a capacidade de pagamento dos usuários nem a sustentabilidade do setor.
Desde 2002, o Idec questiona a ANS sobre os reajustes dos planos individuais. Esta é, porém, a primeira ação movida pelo instituto sobre o tema.
— Esgotamos todas as possibilidades administrativas de revisão dos reajustes. Mas esta é uma solução provisória, enquanto a ANS não cumpre as exigência do relatório do TCU. Propusemos o uso do IPCA setorial de saúde como substituto temporário, por entender que o índice, além de refletir custos do setor, oferece a transparência necessária e mantém relação com a capacidade de pagamento do consumidor — explica Ana Carolina Navarrete, pesquisadora em saúde do Idec.
Representantes das empresas de saúde argumentam que o índice não é adequado como referência ao reajuste. Para André Braz, economista do Ibre/FGV, o IPCA em saúde pode ser usado como parâmetro, mas caberia usar mais dados no cálculo:
— A coleta de preços em serviços fica no tradicional, mas os planos gradualmente absorvem procedimentos novos, ainda não mapeados pelas Pesquisas de Orçamentos Familiares. Sem esquecer que o plano é um serviço para renda mais alta, está fora da cesta da maioria dos brasileiros.
Para a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), que reúne as maiores operadoras, o IPCA não é referência em relação à variação das despesas do segmento. A FenaSaúde destaca que a cesta do IBGE de saúde e cuidados pessoais é composta por itens não relacionados aos serviços de planos de saúde, como higiene pessoal e limpeza.
Na avaliação das empresas, para obter um reajuste menor é preciso discutir os motivos que levam à alta das despesas do setor, como desperdícios, envelhecimento populacional e incorporação de novas tecnologias. A FenaSaúde ressalta ainda que, de 2008 a 2017, o IPCA acumulou alta de 69,9%, contra aumento de despesas assistenciais médico-hospitalares per capita de 169,3%, e o reajuste autorizado pela ANS foi de 131,9% no período.
Procurada, a ANS explica, em nota, que o índice máximo de reajuste anual dos planos individuais/familiares leva em consideração os percentuais de aumento dos planos coletivos com mais de 30 beneficiários. E acrescenta que a taxa é influenciada também por frequência de uso de serviços e custos de saúde para explicar por que não é comparável a índices de preços.
A agência ressalta ainda que o acórdão do TCU não apontou ilegalidade no reajuste de planos individuais em anos anteriores, recomendando o aprimoramento da metodologia e dos procedimentos usados, e que foi concedido prazo de 180 dias para resposta. A ANS afirma que já trabalhava nessa melhoria antes do relatório do TCU.
Avaliação retroativa a 2009
A ação movida pelo Idec traz outras solicitações que ainda não foram avaliadas pela Justiça. Entre elas, que seja reconhecida a ilegalidade e a abusividade dos reajustes autorizados pela ANS desde 2009, com a compensação de valores pagos a mais pelos consumidores em forma de descontos nos reajustes dos próximos três anos. Além disso, requer que a agência seja condenada a pagar indenização por danos coletivos.
O aposentado Maurício Vainstein, de 78 anos, gasta R$ 3 mil por mês com o plano de saúde dele e da mulher, mesmo após ter obtido na Justiça a suspensão do aumento por faixa etária. A aplicação do reajuste anual, diz ele, pode inviabilizar a manutenção da assistência privada da família, já que a aposentadoria paga pelo INSS teve aumento de 2,01%:
— As coisas deveriam ser equivalentes. Mas o reajuste do plano de saúde será muito acima do que recebemos de reposição, comprometendo nosso poder de compra.
Para Mário Scheffer, coordenador do Observatório da Judicialização da Saúde Suplementar do Departamento de Medicina Preventiva da USP, a decisão judicial pode ter impacto em todo o mercado:
— A decisão joga luz sobre a necessidade de revisão de toda a política de reajustes da ANS, não só dos individuais, mas dos coletivos, hoje liberados. Nos individuais, falta transparência nos critérios e, nos coletivos, regulação.
Em levantamento feito pela USP, em 3.870 decisões de segunda instância no Tribunal de Justiça de São Paulo, nos primeiros quatro meses deste ano, 28,2% envolveram reclamações sobre reajuste de mensalidade. Os percentuais de aumento são a segunda maior demanda no tribunal.
— Grande parte dos beneficiários de planos de saúde individuais entra na Justiça contra os reajustes por faixa etária. Os juízes só suspendem o aumento se estiver em desacordo com o contrato, com os padrões de razoabilidade e com as normas da ANS — observa o advogado Leandro Sender.
Colaborou Bárbara Nascimento
Fonte: O Globo