Com aumento das prestações em atraso, bancos não perdoam. Imóveis retomados pela Caixa e colocados à venda, neste ano, já correspondem a 62% de toda a oferta em 2017
Do sonho de receber as chaves da casa própria ao pesadelo de ser expulso do “lar doce lar” pela polícia. Nem sonho, nem pesadelo; essa tem sido a realidade de cada vez mais brasileiros, que, por não conseguirem pagar suas dívidas, têm seu imóvel levado a leilão por bancos e financeiras. “Tenho 61 anos e estou morando de favor num quarto com meus dois filhos, esperando que se resolva algo”, conta a aposentada E.A.P., que foi tirada à força do apartamento que havia comprado na Zona Sul de Belo Horizonte. O número de imóveis postos à venda pela Caixa Econômica Federal, que concentra os financiamentos imobiliários no país, cresceu 57,7% no ano passado, na comparação com 2016.
Este ano, o ritmo continua acelerado e a instituição já ofertou 17,5 mil unidades em todo o Brasil, o equivalente a 62% das negociações de 2017 (28.291 imóveis, ao todo), com base em dados informados ao Estado de Minas na última quarta-feira. De acordo com a Caixa, a maior parte delas se refere a bens com pagamento em atraso pelos proprietários. Apenas em 2018, o banco vendeu 4,9 mil imóveis, tendo arrecadado mais de R$ 591 milhões. No ano passado, foram 10,5 mil construções vendidas, ao valor total de mais de R$ 1 bilhão. Em 2016, a Caixa arrecadou R$ 486 milhões com a venda de 4,7 mil imóveis. Houve aumentos de 105% nos valores e 123% no número de imóveis.
A Zukerman, uma das maiores empresas de leilão do Brasil, registrou aumento de 47% nas vendas em 2017 e informa que 2018 segue na mesma toada, com cerca de 7,5 mil propriedades negociadas, geralmente com valor 60% menor ao de mercado. Este ano, a Sold, outra referência na área, promoveu 12 vezes mais de leilões de imóveis de bancos, em relação a todo o ano de 2015, saltando de 50 para 650. As negociações em 2018 já são quase o dobro das de 2017, quando foram leiloadas 350 propriedades.
O que são números para o mercado significam drama para as famílias. Por causa de um empréstimo de R$ 100 mil, a aposentada E.A.P. perdeu seu apartamento, no Bairro Serra, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte. Em março deste ano, foi expulsa de casa pela polícia, que, em cumprimento à ordem judicial, lhe deu duas horas para sair do imóvel, posto a leilão pelo Banco do Brasil. Morando de favor num cômodo, ela e seus dois filhos agora tentam refazer a vida, que impôs caminhos turbulentos para a família desde 2016.
Dona de um pequeno comércio, E.A.P. contraiu empréstimo para atravessar a crise financeira, que foi muito maior do que esperava. A empresa faliu. Ela acertou como garantia de pagamento o apartamento, que já havia quitado há mais de 15 anos. O imóvel acabou sendo tomado pelo banco e arrematado em leilão por R$ 183 mil.
Ainda traumatizada pela reviravolta, a aposentada relata uma série de atropelos no processo que a levaram perder seu lar, que, segundo ela, sequer passou por avaliação. “Eles me mandaram uma carta registrada no cartório da comarca de Abadia, em Alagoas, e não de Belo Horizonte. Não me passaram o valor da mora nem me deram a chance de pagar antes do leilão. Tentei negociar”, conta.
Assistência
De acordo com o diretor da Associação dos Mutuários de Casa Própria em Minas (AMMinas), que presta assistência a proprietários de imóveis, Marcelo Nogueira, a entidade atende, em média, 1680 pessoas ao ano. Em 2018, os atendimentos superam 2 mil em sete meses. “A cada 10 mutuários, oito estão devendo financiamento habitacional. E muitos recorrem ao Judiciário para reduzir o valor da prestação e não ficar inadimplente”, afirma. Os problemas com o pagamento das prestações da casa própria têm sua origem em 2012, segundo o especialista. “A partir daí, facilitaram demais a aquisição de crédito. Os bancos estavam emprestando 100% do valor, nem precisava ter carteira assinada para comprar imóvel”, explica.
O advogado Kênio Pereira, presidente da Comissão de Direito Imobiliário da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Minas Gerais (OAB/MG), reforça que o acréscimo da inadimplência da casa própria era esperado.“Houve grande estímulo à concessão do crédito, muitos mutuários usaram rendas fictícias, aproveitando a flexibilidade na concessão de empréstimos. Em 2015, com a redução da atividade econômica, o desemprego aumentou, a renda diminuiu e a inadimplência começou a pipocar”, diz.
O diretor da AMMinas afirma que o aumento de brasileiros que tiveram imóveis tomados por instituições financeiras também se deve a mudanças, em 2015, na Lei nº9.514/97, que dispõe sobre a alienação fiduciária, procedimento em que um bem é transferido como garantia do pagamento de um débito. “A lei não dá oportunidade para o consumidor negociar administrativamente. A partir de 90 dias de atraso, o banco pode mandar uma notificação e, se não pagar, o mutuário da casa própria perde o imóvel em cartório”, afirma.
Foi o que aconteceu com a aposentada E.A.P, que contraiu empréstimo do Banco do Brasil. O banco informa que conduz seus processos de empréstimo de acordo com a lei 9.514. Segundo a instituição, não obtendo sucesso na cobrança amigável, inicia-se a execução dos procedimentos e ritos contidos na lei 9.514, que envolvem intimação e consolidação da propriedade. O mutuário é notificado através do cartório com a informação de que o bem será levado a leilão público.
Desemprego pressiona índice de inadimplência
”Quando vi, foi amor à primeira vista”, conta a dona de casa Helen Duarte. O caso de amor em questão é com o apartamento comprado pela família em 2007 no Bairro Jardim das Indústrias, em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. “Morava de aluguel, juntamos férias, 13º salário e deu o valor exato da entrada. Sobrou R$ 100 para comprar uma lata de tinta”, lembra. Mas, da noite para o dia, o sonho da casa própria virou pesadelo na vida dela e do marido, Willian Duarte.
Ele perdeu o emprego e família deixou de pagar três parcelas de R$ 280 do financiamento com a Caixa Econômica Federal, que leiloou o apartamento, em dezembro de 2016. “Tentamos várias vezes negociar e eles não aceitavam. Chegaram a me oferecer caminhão para tirar minhas coisas, isso com meus filhos em casa. Até que, dois dias antes do leilão, achamos a AMMinas (Associação dos Mutuários de Casa Própria em Minas). Foi Deus”, diz. Às 11h, eles quitaram a dívida. Às 13h, o apartamento foi comprado por um investidor.
O caso foi parar na Justiça, que anulou o leilão e devolveu à família a posse do imóvel. “Somos pessoas honestas, não deixamos de pagar de propósito”, afirma Helen, que agora tenta na Justiça reduzir o valor da prestação. O diretor da AMMinas, Marcelo Nogueira, explica que o mutuário deve se inteirar dos seus direitos antes da negociação. “A partir de duas prestações ou quase inteirando a terceira, o consumidor que não consegue pagar pode pedir uma incorporação. Ele paga 30% do valor devido e o restante é jogado para o montante devedor. É possível também usar o Fundo de Garantia para quitar o pagamento em atraso”, explica.
O advogado Kênio Pereira, presidente da Comissão de Direito Imobiliário da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Minas Gerais (OAB/MG), também alerta que, no momento em que o consumidor perder a capacidade de pagar a dívida, ele deve negociar rápido com a instituição financeira, evitando aumentar a incidência de juros sobre o saldo devedor.
‘Minha Casa, Minha Dívida’
Segundo o diretor de pesquisa de mercado da Câmara do Mercado Imobiliário e Sindicatos das Empresas do Mercado Imobiliário de Minas Gerais (CMI/Secovi-MG), Leonardo de Bessas Matos, a maior parte dos financiamentos que vão a leilão se incluem na categoria do Minha Casa, Minha Vida, programa do governo federal de subsídio à moradia popular “Se vai analisar, 80% dos imóveis são do Minha Casa, Minha Vida. Nem com o subsídio estão conseguindo pagar”, ressalta.
Por muito pouco, Geraldo Cordeiro, de 39 anos, quase perdeu a casa própria no fim do ano passado. Fruto de trabalho e suor, comprou o apartamento de dois quartos em Lagoa Santa, na Região Metropolitana de BH, usando os benefícios do Minha Casa, Minha Vida, que acabou virando “minha dívida”. Um dia, deu de cara com o oficial de Justiça na porta do prédio, comunicando sobre o risco de o imóvel ir para leilão.
Geraldo era professor do Estado e, por causa de mudanças na legislação, perdeu um dos cargos comissionados e ainda sofreu com o parcelamento de salários. Mas os boletos continuaram a chegar e ficou em atraso com três parcelas do financiamento. “Fiquei arrasado. É um apartamento popular, dei entrada em dinheiro”, lembra. Em novo emprego, Geraldo conseguiu quitar a dívida, mas voltou a ficar com duas parcelas em atraso. “Entrei com um pedido de análise para diminuir o valor da parcela e reduzir os juros”, conta.
Já os interessados em comprar imóveis em leilões, com valor abaixo de mercado, precisam tomar cuidado, segundo Matos. “O grande problema, nesses casos, é conseguir a posse do imóvel, porque a maioria é vendido quando ainda está ocupado”, explica.
ARMADILHA
58%
Foi quanto cresceu, em 2017, o número de imóveis retomados que foram postos à venda pela Caixa
Fonte: EM