O Hospital Santa Lúcia, localizado em Brasília, terá de indenizar no valor de R$ 100 mil, por danos morais, os pais de uma menina de oito meses que morreu depois de ter tido sua internação recusada na unidade de tratamento intensivo (UTI) do estabelecimento. A decisão é da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O relator do caso, ministro Villas Bôas Cueva, fundamentou seu voto na teoria da perda da chance de cura ou sobrevivência (perte d’une chance de survie ou guérison), ao considerar que, embora não haja provas de que a morte da criança tenha sido causada diretamente pela omissão de socorro, a atitude do hospital em não atender a menor reduziu “substancialmente” suas possibilidades de sobrevivência.
Segundo ele, o hospital tinha a obrigação legal de prestar socorro, mas se omitiu e privou a paciente da chance de receber um tratamento que talvez a pudesse salvar ou, pelo menos, garantir uma sobrevida.
Ordem judicial
Em julho de 2007, a menina foi internada no Hospital Regional de Taguatinga com tosse seca, coriza hialina e obstrução nasal, dispneia, febre, hipoatividade e falta de apetite. O quadro se agravou e, como o hospital público não tinha condições adequadas para o tratamento, os médicos sugeriram a transferência para um hospital particular.
Os pais conseguiram uma liminar judicial determinando a internação em estabelecimento privado que tivesse vaga e o pagamento das despesas pelo Distrito Federal. Mesmo diante da cópia da decisão, impressa a partir do site do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, o Hospital Santa Lúcia se recusou a receber a criança, alegando que não fora oficialmente intimado.
Mantido na enfermaria do hospital público, sem os equipamentos necessários para sua sobrevivência, o bebê não resistiu.
Culpa da doença
Os pais ingressaram com ação na Justiça pedindo indenização por danos morais e materiais contra o Hospital Santa Lúcia. Em primeira e segunda instância, a ação foi julgada improcedente ao argumento de que, no processo, não se provou que a morte tenha decorrido diretamente da conduta do hospital.
Para o Tribunal de Justiça do DF, a morte foi consequência do “grave estado clínico” da criança aliado à “falta de tratamento adequado”, e o hospital não teria a obrigação de cumprir a ordem judicial com base apenas em documento não oficial.
Em recurso ao STJ, os pais sustentaram que o hospital agiu de forma omissiva ao não providenciar a internação da menina na UTI pediátrica.
Atentado à dignidade
Ao analisar o caso, o ministro Villas Bôas Cueva destacou que “havia inescapavelmente a necessidade de pronto atendimento da menor, cuja recusa caracteriza omissão de socorro”. Segundo ele, o hospital tinha, no mínimo, o dever de permitir o acesso da criança ao atendimento médico, ainda que emergencial, “um ato simples que poderia ter salvado uma vida”. Para o ministro, “prestar socorro é dever de todo e qualquer cidadão”.
O relator lembrou que a Constituição, além de consagrar a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, determina o direito de todos à saúde. Citou ainda legislação infraconstitucional que reafirma as garantias à saúde e à prioridade de atendimento hospitalar, em especial de crianças e adolescentes.
“Ao negar a prestação fundamental à criança, o hospital descumpriu o seu dever constitucional e praticou atentado à dignidade humana e à vida”, declarou Villas Bôas Cueva, acrescentando que a atitude de privilegiar trâmites burocráticos em detrimento do atendimento a paciente em estado grave “não tem respaldo legal ou moral”.
Nexo causal
De acordo com o ministro Cueva, o direito brasileiro adota o princípio de que “ninguém pode ser responsabilizado por aquilo a que não tiver dado causa”– e causa, para esse efeito, é apenas “o evento que produziu direta e concretamente o resultado danoso”.
“Uma das condições básicas para a concessão da indenização nos casos de responsabilidade civil é o nexo causal certo entre a falha e o dano. Ou seja, ou se reconhece o ato e o relaciona ao dano ou julga-se absolutamente improcedente o pedido, é a regra do tudo ou nada”, explicou o relator.
No entanto, ele disse que as peculiaridades do caso exigem enfoque diverso, pois está em questão uma conduta que poderia ter garantido a chance de resultado diferente. A omissão, segundo o ministro, adquire relevância jurídica e torna o omisso responsável pelo dano “quando tem o dever jurídico de agir, de praticar um ato para impedir o resultado, e se omite assumindo o risco”.
Internet vale
O ministro afastou, ainda, a alegação de que a liminar determinando a internação da criança não poderia ser cumprida por falta de documento oficial. Segundo ele, não se pode recusar a validade de decisão judicial contida no site do tribunal local, pois o próprio STJ já decidiu que as informações publicadas nesse meio têm valor legal.
Ele citou precedente da Terceira Turma: “Com o advento da Lei 11.419/06, que veio disciplinar o uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais, acredita-se que a tese de que as informações processuais fornecidas pelos sites oficiais dos tribunais somente possuem cunho informativo perdeu sua força, na medida em que, agora, está vigente a legislação necessária para que todas as informações veiculadas pelo sistema sejam consideradas oficiais”.
Perda da chance de cura ou sobrevivência
Para o ministro Cueva, “é indiscutível que o hospital pode não ter causado diretamente o resultado morte”, mas tinha a obrigação legal de usar os recursos disponíveis para tentar impedi-lo e não o fez, “privando a paciente de uma chance de receber tratamento digno que, talvez, pudesse lhe garantir uma sobrevida”.
A perda da chance, explicou o ministro, “está em relação de causalidade não com o evento morte, mas com a interrupção do tratamento” que o hospital tinha a obrigação jurídica de proporcionar, “ainda que nunca se venha a saber se geraria resultado positivo ou negativo para a vítima”.
“Em verdade, a perda da chance de cura ou sobrevivência é que passa a ser considerada como bem juridicamente protegido, pelo que sua privação indevida vem a ser considerada como passível de ser reparada” – acrescentou o relator, ao julgar “incontestável” o direito dos pais à reparação moral, que foi fixada em R$ 50 mil para cada um. “Isso porque o que se indeniza na responsabilidade por perda da chance outra coisa não é senão a própria chance perdida”, concluiu.
Pensão negada
A Terceira Turma rejeitou, porém, o pedido de indenização por danos materiais, na forma de pensão mensal. Segundo o relator, “o que os pais perderam foi a chance do tratamento e não a continuidade da vida”.
“Considerando que não há como ter certeza de que, ainda que prestado o atendimento de emergência de forma adequada, a paciente sobreviveria, a indenização deve ater-se apenas ao dano moral, excluído o material. Mesmo porque, não se pode indenizar o possível resultado”, afirmou o ministro.
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