Assistimos a uma verdadeira arquitetura da destruição, típica do bolsonarismo, mas não dele exclusiva.
O presidente da República, seus ministros, o Conselho Federal de Medicina, muitos médicos e, agora se sabe, a partir das denúncias contra a Prevent Senior, que até redes hospitalares e planos de saúde podem estar envolvidos em um verdadeiro projeto de necropolítica.
Contra todas as informações e conhecimentos disponíveis e fugindo de todos os protocolos científicos, brasileiras e brasileiros, aos milhares, foram tratados como cobaias. A desumanização da pessoa humana é características elementar nas graves e generalizadas violações de direitos humanos, e ao transformar o paciente em cobaia, na busca por “algo maior”, o que se faz é retirar da pessoa sua dignidade, objetificá-la, transformá-la em um número, que sequer entra nas estatísticas porque os dados em relação a ela são fraudados.
Pacientes, antes de tudo, são pessoas em vulnerabilidade, tanto física, em razão dos sintomas das doenças que lhe acometem, quanto psíquica, pois expostos aos abalos que os prognósticos podem trazer. No caso da pandemia, essa vulnerabilidade psíquica foi e é ainda mais acentuada, em razão das incertezas quanto aos prognósticos, que pode ser quase nenhum sintoma ou a morte, e por toda a pressão psicológica gerada pelos novos modos de vida que foram inventados e que envolveram restrições inúmeras quanto ao que antes se fazia.
A vulnerabilidade é a marca que qualifica as diferentes formas de proteção de direitos humanos, e não podia ser diferente com os direitos dos pacientes. Assim, tanto no Brasil como internacionalmente, diversos instrumentos jurídicos e regulamentos de ética médica orientam o tratamento do direito dos pacientes, o que Aline Albuquerque, dentre outros, chama de direitos humanos dos pacientes.
Pincelando-os rapidamente, pode-se falar no princípio do cuidado centrado no paciente, baseado na centralidade do paciente como sujeito de atenção e de direitos; no princípio da dignidade da pessoa humana; no princípio da autonomia relacional; no direito à informação clara e adequada quanto às possibilidades e riscos de tratamento; e nos essenciais princípios da não-maleficência e da beneficência, que implicam tratamentos que não gerem danos deliberados e que maximizem o benefício e minimizem os prejuízos.
Como em outras áreas nas quais o atual governo também gabaritou a lista de violações a direitos, também na esfera de proteção sanitária da população brasileira durante a pandemia, especialmente daqueles já acometidos por covid-19, parece ter violado todos os direitos e princípios arrolados acima. E, muito pior, como antes mencionamos, para que a tragédia chegasse no resultado que chegou, muitos atores e causas precisaram convergir.
A começar pela presidência da República e pelos demais agentes do governo federal, o que se viu foi não só o negacionismo inicial sobre a gravidade da pandemia, compartilhado por outros líderes mundiais, mas um negacionismo que permanece até hoje e que se transmutou em um diversionismo acientífico que buscou, contra todas as recomendações e orientações que se foram construindo, contra todo o acúmulo de conhecimentos que se foi adquirindo, a famigerada imunidade de rebanho, direcionando todas as medidas para evitar que as medidas de restrição de circulação fossem de fato obedecidas, inclusive retardando e dificultando pagamentos de auxílios para os mais vulneráveis. A ideia, desde o início, parece ter sido voltada para a mais ampla disseminação da doença entre a população, para que o mais rapidamente possível se atingisse uma imunidade coletiva, independentemente do custo em vidas humanas que tal medida pudesse representar. Junto a isso, a outra frente “estratégica” do governo federal, novamente reiterada no abjeto discurso que Bolsonaro proferiu na abertura da assembleia geral da ONU, foi o “tratamento precoce”, baseado na utilização de cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina, que embora estudado, em nenhum momento foi considerado efetivamente promissor para tratar a doença, quanto mais para “preveni-la”, e que rapidamente foi colocado em xeque e abandonado como tratamento viável na absoluta maioria dos países. Somou-se a isso a campanha difamatória contra a eficácia de vacinas que, eureca!, mostraram-se a principal ferramenta para o controle da epidemia e para a prevenção da doença.
O presidente, que deve ser responsabilizado pela sua nefasta condução da pandemia, não esteve sozinho nessa empreitada, contudo. E por pior que tenha sido sua atuação, e não se imagina uma pior do que a que assistimos, ainda assim não teria sido suficiente para tamanha degradação e mortes. Isso se prova pelos dados de vacinação no Brasil. Mesmo diante da panfletagem anti-vacina do presidente, a quase totalidade da população adulta pretende tomar ou já tomou ao menos uma dose da vacina, ou seja, sequer entre seus fiéis sectários o discurso colou.
O lustre científico foi proporcionado pelo Conselho Federal de Medicina, que até o momento não revogou a orientação que permite o uso de cloroquina no tratamento de covid-19, mesmo diante da consolidação das evidências científicas não só em sentido contrário, mas indicando que ainda causa malefícios, ou seja, ofendendo de uma só vez os princípios da não-maleficência e da beneficência. Fiel apoiador do governo atual, o CFM adotou a novilíngua bolsonarista sobre liberdade para transformar a autonomia médica em um salvo conduto que permite aos profissionais orientarem e adotarem tratamentos que reconhecidamente não trazem benefício e que comprovadamente causam malefícios sem que por isso possam ser punidos, o que em qualquer outra entidade de classe séria seria considerado um erro crasso, porque contrário ao conhecimento científico hoje disponível.
O apoio na implementação das estratégias de imunidade de rebanho e de tratamento precoce parece ter vindo de uma das maiores redes de hospitais e planos de saúde do Brasil, voltada principalmente para pessoas idosas, a Prevent Senior. Segundo as denúncias que chegaram à CPI da Covid, teria sido realizado um estudo com cloroquina entre pacientes da rede, sem autorização prévia do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa, sem que pacientes e seus parentes soubessem que a droga estava sendo ministrada, com alteração do registro CID da doença após 14 dias de tratamento e dos dados constantes dos registros de óbitos, além de disponibilização aos pacientes do “kit covid” padronizado, sem atenção às peculiaridades de cada um deles. Pior, a rede teria inclusive participado da elaboração dos protocolos de uso do tratamento precoce efusivamente estimulados pelo Ministério da Saúde, que chegou a ter um aplicativo para esse fim. Tudo merece ser devidamente apurado.
Não seria surpresa se outras redes de saúde privada também tenham adotado algumas dessas práticas. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que tem justamente o papel de regular e fiscalizar a atuação do setor, ao que se sabe, até o momento não tomou qualquer providência efetiva em relação a Prevent Senior e quanto a potenciais outros casos.
Muitos médicos lucraram com essa situação, propagandeando às pessoas que “quisessem” que receitariam cloroquina, inclusive pelas redes sociais. O “quisessem” vem entre aspas justamente em razão do vício de consentimento no qual muitas pessoas foram induzidas com as posturas do Presidente da República, seus ministros, CFM, médicos, dentre outros.
Falta avaliar também o papel que as fabricantes dos medicamentos do tratamento precoce tiveram nesse morticínio à base de cloroquina. Que lucraram enormemente, já se sabe. Contribuíram, estimularam ou incentivaram a adoção desses tratamentos? A ver.
O apoio de parte considerável do empresariado às medidas vindas do governo federal, sob o mote da “proteção à economia”, ajudou também a influenciar o relaxamento das medidas sanitárias de proteção.
Tudo isso somado, as inúmeras causas para grandes tragédias, contribui para a maior tragédia de nossa história, que ficará indelevelmente registrada por muitas gerações. Não seria indevido relacionar essas condutas, da maneira como executadas e com a intenção que buscavam, como um regime de terror, onde a morte poderia estar na esquina, por um vírus que seria evitável com adoção de medidas de distanciamento, testagem em massa, rastreamento de infectados e vacinação rápida, mas que foi tratado com um remédio que, além de ineficaz, ainda piorava o quadro da doença, quando todo o mundo civilizado adotava medidas copernicamente diferentes. “E daí?” Entre o risco da doença e da morte e a certeza da fome, sua e de seus filhos, milhões foram obrigados a optar pela primeira opção. Não há como qualificar isso de outro modo senão de terror.
Diante da tragédia posta, o que fazer agora? Primeiro, a pandemia não findou, e resta fortalecer o SUS, a vacinação e garantir que se continue a estimular medidas de prevenção. Os efeitos no sistema de saúde ainda são incertos, pois não se sabe com qual frequência as pessoas precisarão ser novamente vacinadas, tampouco os tratamentos que terão que ser disponibilizados para aqueles que padecem de sequelas da covid.
No âmbito jurídico, é evidente que houve uma grave e generalizada violação de direitos humanos no trato da pandemia, por diferentes atores. As responsabilidades devem ser apuradas, civil, administrativa e criminalmente, em relação a todos os órgãos, empresas e pessoas que concorrem para esse resultado, mas com especial atenção às vítimas, tanto aqueles que ficaram com sequelas ou que quase morreram, quanto às famílias que foram privadas de seus entes queridos. Sob o aspecto penal, ante o congelamento do sistema de justiça brasileiro, talvez seja o caso de engrossar as denúncias no Tribunal Penal Internacional para que se inclua outras figuras como partícipes de Bolsonaro.
“É curioso como, até o final, os tiranos mais convencidos respeitam vagamente as formas, como se quisessem dar a impressão de que não se esquivam dos trâmites administrativos enquanto transitam abertamente por cima de todas as normas. Dir-se-ia que o poder não lhes basta, e que experimentam um prazer suplementar obrigando seus inimigos a cumprir, pela última vez, os rituais do poder que eles mesmo estão dinamitando”, escreveu Éric Vuillard, em seu fabuloso “A ordem do dia”, sobre o apoio do empresariado alemão a Hitler.
João Paulo de Campos Dorini
Defensor público Federal. Defensor Regional de Direitos Humanos em São Paulo. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP e doutorando em Direitos Humanos pela USP.
Fonte: Migalhas