ENTRE TANTAS FALAS VEXATÓRIAS de Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral da ONU, uma soou como confissão de culpa pelos crimes de atentado contra saúde pública liderados por seu governo. O presidente declarou: “Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina”. Esse apoio à “autonomia dos médicos na busca do tratamento precoce” pode até parecer uma coisa boa, mas, no contexto atual, trata-se de uma defesa velada do charlatanismo durante a pandemia.
Quando se conhecia pouco o coronavírus, a ideia de testar medicamentos como hidroxicloroquina e ivermectina fazia algum sentido. Hoje, diante de uma pororoca de evidências que comprovam a ineficácia dessas drogas e o perigo do seu uso indiscriminado, a defesa desse “tratamento precoce” é criminosa. O mais grave é que o presidente não está sozinho na prática desse crime. Há uma legião de médicos, hospitais e planos de saúde — todos alinhados à ideologia bolsonarista — envolvidos num esquema macabro de charlatanismo. Além deles, temos também o CFM, que Bolsonaro tratou no discurso na ONU como o fiador de toda essa picaretagem — o que de fato é.
Uma reportagem da GloboNews e um dossiê elaborado pela CPI da Covid a partir de denúncias de médicos ajudaram a revelar um esquema tétrico de experimentos não autorizados em pacientes da Prevent Senior, um dos maiores planos de saúde do país. De acordo com as denúncias, a empresa fraudou pesquisas, pressionou médicos a receitarem remédios comprovadamente ineficazes e escondeu sete mortes por covid-19.
No ano passado, a empresa divulgou um estudo que comprovava que o uso da cloroquina associada à azitocimina tinha alta eficácia no combate à doença. O estudo tinha aparência, jeito e cheiro de picaretagem. E era mesmo, tanto que foi cancelado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, a Conep, que não autorizou os experimentos e apontou uma série de falhas técnicas e omissões no estudo. Desmascarada, a Prevent Senior agora alega ter sido um mero “acompanhamento observacional de pacientes”. Mas o estrago já havia sido feito. O resultado da pesquisa serviu como uma luva à narrativa charlatã do bolsonarismo e foi divulgada amplamente por seus principais agentes, inclusive pelo presidente da República.
A afinidade entre o bolsonarismo e a Prevent Senior é clara e notória. Flávio e Carlos Bolsonaro divulgaram em 2020 no Twitter os resultados do estudo da empresa sobre o uso de hidroxicloroquina. Na mesma época, o presidente Jair Bolsonaro fez uma live com os médicos da Prevent Senior para falar sobre tratamento precoce para covid1-9 e a situação da pandemia no país.
Mas o alinhamento da empresa ao bolsonarismo vai além da defesa do tratamento precoce. Ele é mais antigo e umbilical do que se imagina. Em 2018, durante o período eleitoral, a empresa cancelou o patrocínio dado a um projeto teatral da atriz Cláudia Raia. O motivo? Ela postou um vídeo em que aparece dizendo “ele não”. Ou seja, para a Prevent Senior é muito mais grave se posicionar contra o candidato de discurso fascistoide do que falsificar prontuários e obituários de seus pacientes.
Dois grandes defensores do tratamento charlatão tiveram destaque nas investigações da CPI: Anthony Wong e Luciano Hang. O primeiro foi um dos médicos que atuava na linha de frente da divulgação do uso da cloroquina para combater a covid, mas morreu da doença mesmo usando cloroquina. Ocorre que a causa da morte e o medicamento oferecido foram omitidos do seu prontuário e obituário. Uma reportagem da Piauí demonstrou que não só Wong recebeu cloroquina, como o seu uso foi autorizado pela família. Ou seja, a Prevent Senior escondeu criminosamente a causa da morte de Wong para preservar a sua narrativa tétrica em defesa do tratamento precoce.
A renomadíssima médica Nise Yamaguchi esteve à frente dos cuidados de Wong durante o período de tratamento pela Prevent Senior. A doutora tratou Wong como cobaia para seus experimentos. O médico recebeu uma série de medicamentos que fazem a cabeça dos negacionistas: hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina, heparina inalatória, metotrexato venoso, além da famosa ozonioterapia por via retal — uma prática proibida pelo CFM.
Nada disso adiantou, muito pelo contrário. O quadro de Wong piorou, desenvolvendo insuficiência renal. Ele foi entubado e contraiu uma pneumonia bacteriana que o levou à morte. Evidentemente o tratamento precoce não deu certo e, em conluio, família, Prevent Senior e Nise Yamaguchi toparam fingir que Wong não foi uma cobaia para esses experimentos. O prontuário e obituário foram adulterados, e todos eles se calaram para não prejudicar sua narrativa macabra. A Prevent Senior ostentava ter as taxas mais baixas de mortalidade por Covid, mas isso não passava de uma mentira sustentada por prontuários e obituários adulterados.
Luciano Hang, que é figura central no esquema bolsonarista de divulgação do negacionismo e é suspeito de financiar as fake news do governo, também participou desse conluio fúnebre. Ele teve sua mãe internada por covid-19 pela Prevent Senior e, após sua morte, apareceu em vídeo lamentando o fato de não ter recorrido ao tratamento precoce. Mas era mentira. Regina Hang morreu mesmo tendo utilizado o kit covid, conforme consta nos documentos obtidos pela CPI. Ela recebeu hidroxicloroquina, azitromicina e colchicina antes da internação. No hospital, ela recebeu ainda ivermectina e aplicações de ozônio no reto. A causa da morte da matriarca foi omitida no obituário. Luciano Hang foi convocado pela CPI para esclarecer as mentiras envolvendo a morte da sua mãe.
O uso de cobaias humanas para experimentos de tratamento precoce para covid-19 não é uma exclusividade da Prevent Senior. Há uma rede de hospitais e médicos alinhados à narrativa bolsonarista que fizeram experimentos similares. Uma das unidades da Unimed, que é uma das maiores operadoras de planos de saúde do país, chegou a enviar para médicos e profissionais de saúde o kit covid enfeitado com um laço de fita.
Em Porto Alegre, um hospital da polícia militar testou proxalutamida em pacientes com covid-19 sem autorização da Anvisa. Trata-se de uma droga experimental desenvolvida na China para o tratamento de câncer da próstata. A droga já havia sido testada em pacientes de Manaus, no Amazonas, em um outro caso escandaloso que também está sob investigação da Anvisa, da Conep e do Ministério Público Federal por indícios de irregularidades e infrações éticas. Há ainda a suspeita de que os experimentos em Manaus tenham causado a morte de 200 pacientes. O presidente Jair Bolsonaro já defendeu fortemente o tratamento com a proxalutamida, conhecida como a nova cloroquina.
Esses experimentos usando a população de cobaia foram feitos em perfeita sintonia com vários membros do chamado “Gabinete Paralelo”, que atuava como uma espécie de versão não oficial do Ministério da Saúde. Tudo isso aconteceu sob o silêncio criminoso do Conselho Federal de Medicina, o CFM, que já demonstrou em diversos momentos o seu alinhamento com o bolsonarismo. Há muitas perguntas não respondidas: quantos idosos morreram na Prevent Senior em decorrência do uso do kit covid? Quantos morreram em Manaus e em Porto Alegre pelo teste ilegal de proxalutamida? Quantos prontuários e obituários foram adulterados para sustentar a narrativa negacionista? Quais redes privadas fizeram experimentos e maquiaram dados como a Prevent Senior?
Trata-se de um escândalo de dimensões gigantescas e com precedentes na história. Guardadas as devidas proporções, mas sem precisar forçar a barra, eles podem ser comparados aos experimentos de Joseph Mengele, o médico nazista que também utilizava cobaias humanas para atender à narrativa da “raça pura”de Hitler.
Fonte: Intercept