Enquanto as atenções da CPI da Covid se concentram na corrupção da compra de vacinas, empresários de planos de saúde atuam por dentro e por fora dos canais oficiais para obter a desregulamentação do setor.
Está em curso uma operação de grande magnitude, cujos efeitos prejudiciais ao sistema de saúde são potencialmente superiores às irregularidades atualmente investigadas pela comissão de inquérito.
As primeiras menções da CPI aos planos de saúde constam de três requerimentos aprovados na sessão do dia 30 de junho. São pedidos de informações sobre a atuação de empresas como Hapvida e Prevent Senior, próximas de núcleos bolsonaristas e que adotaram o uso institucional da cloroquina.
A miudeza do tema na CPI contrasta com uma agenda intensa deflagrada nesta semana, voltada para atender as reivindicações de empresários da saúde suplementar.
O movimento se dá em três canais distintos, porém sintonizados:
- Conselho de Saúde Suplementar – Consu.
A instância, antes figurativa, agora foi transformada em órgão deliberativo do Ministério da Saúde. Do primeiro encontro do Consu, em abril, saiu a afirmação do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que o “setor público não vai conseguir acompanhar a questão da saúde, o setor privado é a solução”.
Prevista para ocorrer nesta segunda-feira, 5 de julho, no Palácio do Planalto, a segunda reunião do Consu foi convocada pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para fechar a proposta de uma nova “Política Nacional de Saúde Suplementar”. A primeira versão do documento, colocada em consulta pública, dava margens à liberação de reajustes de mensalidades, autorização da venda de planos de menor cobertura e aumento do tempo de espera por atendimentos e tratamento.
Este primeiro canal, via Executivo, é caracterizado pelo desprezo à legislação prévia, que seria contornada por vias administrativas, e pela atribuição de papel coadjuvante à ANS. É uma via que pode trombar com oposições de órgãos do Judiciário e da burocracia pública.
- Câmara dos Deputados
O presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), atendeu o pleito das operadoras de planos de saúde e convocou, para esta terça-feira, 6 de julho, a instalação de uma comissão especial destinada a propor nova lei dos planos de saúde.
Retoma-se, assim, o mesmo caminho trilhado pelas empresas em 2017, quando outra comissão especial da Câmara, relatada pelo ex-deputado Rogério Marinho, atual Ministro do Desenvolvimento Regional, tentou impor mudanças substantivas no marco legal dos planos de saúde. Naquela ocasião, divergências entre cooperativas médicas, administradoras e seguradoras impediram a votação no plenário da Câmara, e a marcha foi interrompida com a mudança da legislatura, em 2019.
Pela proximidade que têm com o setor privado da saúde, tanto Lira quanto o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), são hoje vetores da tramitação acelerada. Recentemente, Lira ganhou simpatia dos deputados, ao elevar em 170% – de R$ 50 mil para R$ 135,4 mil – o limite individual de despesas médicas privadas dos parlamentares. Barros, quando foi ministro da Saúde do governo Temer, notabilizou-se pela tentativa de aprovar os planos que ele denominou de “acessíveis” ou “populares”, com mensalidades de menor valor e coberturas segmentadas. Na campanha eleitoral de 2014 Barros recebeu financiamento de empresa de plano de saúde, segundo registros no TSE.
Contudo, a adesão crescente de parte dos deputados a movimentos de rua como o “Fora Bolsonaro” e o “Viva o SUS”, assim como o envolvimento de parlamentares defensores dos planos com as denúncias de corrupção na compra de vacinas, são fatores que interpõem obstáculos ao avanço da nova legislação perseguida.
- Senado Federal
Consta da pauta oficial da Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado, prevista para 7 de julho, a sabatina do nome encaminhado pela Casa Civil da Presidência da República para ocupar o cargo de diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão que regulamenta e fiscaliza os planos de saúde. Antes reservada para Marcelo Queiroga, que acabou assumindo o ministério da Saúde, a presidência da ANS deve ser entregue ao advogado Paulo Rebello, que já ocupa cargo de diretor na agência.
Rebello, indicado pelo Partido Progressista (PP) para presidir a ANS, foi chefe de gabinete de Ricardo Barros, entre 2016 e 2018, quando o deputado foi ministro da Saúde. Antes, havia passado pelo ministério das Cidades e da Integração Nacional, no governo de Dilma Roussef (PT).
Nas sabatinas dos candidatos a diretorias das agências reguladoras, os senadores votam invariavelmente pela aprovação dos nomes apresentados. Durante os governos do PT, o MDB do Senado era influente na ocupação de cargos na ANS. Com o aval de empresários de planos de saúde, vários nomes foram conduzidos à agência, apadrinhados pelos ex-senadores Eunício Oliveira, Romero Jucá e pelo atual relator da CPI, Renan Calheiros.
Com a mudança do poder de distribuição e loteamentos de cargos, do MDB para o PP, e denúncias recentes que envolvem Ricardo Barros, é possível que haja alteração na rotina da prévia imposição de nomes. Senadores de oposição, estimulados pelo sucesso de audiência da CPI, poderão inaugurar uma real sabatina. A análise do nome de Paulo Rebello, prevista para a próxima quarta-feira, pode surpreender.
O lobby ativo das operadoras
Com 48 milhões de pessoas conveniadas, os planos de saúde movimentaram R$ 217,4 bilhões em 2020.
Trata-se de um dos poucos setores da economia que lucrou com a crise sanitária, principalmente as grandes operadoras – 20 delas dominam 50% do mercado.
Embalados em créditos públicos, isenções fiscais e menor uso de serviços pelos usuários, os planos assistem a pandemia de camarote. Tiveram autorização da ANS para manter reajustes abusivos de mensalidade, negaram testes de covid até agosto de 2020 e se omitiram de compartilhar leitos nos momentos de colapso do SUS.
Neste instante, o lobby das empresas de planos de saúde corre solto, de maneira coordenada no Executivo e no Legislativo. Para isso, conta com o silêncio de burocratas e de políticos céticos em relação ao SUS.
Disseminou-se fake news recorrente, de que o aumento do tamanho do mercado de planos de saúde vai gerar a “desoneração” do SUS. Essa mentira, recontada tantas vezes por lobistas, é facilmente desmontada com uma simples conferência.
Houve expressivo crescimento dos planos de saúde nos anos 2000 e, nem por isso, o SUS passou a atender menos. Pelo contrário, planos privados com restrições de coberturas estabeleceram um fluxo de mais demanda por vias tortas para a rede pública. Oneraram, portanto, o SUS.
Impedidos pela regulamentação atual, planos mais restritos, conhecidos como “copo d’água e melhoral”, se isentarão da responsabilidade por atendimentos especializados e de emergência, que ficarão sob a responsabilidade do SUS.
Porta-vozes do setor privado defendem frequentemente o termo “integração com o SUS”. Pretendem, com isso, obter respaldo legal para emplacar a venda de um produto “público-privado”, ou um plano de saúde “junto e misturado”. Os clientes pagariam todo mês e receberiam de volta um atendimento 90% público e 10% privado.
Ter assistido de perto a importância dos cuidados do SUS e a essencialidade da atenção hospitalar pública e emergencial para salvar vidas de pacientes graves com covid-19, não refreou a antiga aspiração do setor suplementar, de expandir mercados forjados com intervenções políticas.
Após 18 meses desde o início da pandemia, com apenas 17 % da população completamente vacinada e 520 mil vidas perdidas, o Brasil segue imerso no maior fracasso de saúde pública da sua história.
A crise sanitária aqueceu a voracidade de vendedores de ilusões e a crise política gerou oportunidades para a ação orquestrada de ministros, parlamentares e empresários comerciantes de serviços de saúde.
Enquanto a CPI da Covid se concentra apenas nas denúncias de corrupção da compra de insumos, vai sendo urdido um ataque avassalador ao sistema de saúde brasileiro.
*Mario Scheffer é professor da Faculdade de Medicina da USP;
Ligia Bahia é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Artigo publicado orginalmente no jornal O Estado de S. Paulo, em 5 de julho de 2021