RIO — Uma ação banal de inclusão indevida do consumidor no cadastro de devedores pode vir a afetar a indenização de processos de milhões de brasileiros.
Na pauta da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), nesta terça-feira, o caso da servidora pública aposentada gaúcha, de 71 anos, que tramita no Judiciário há 15 anos, será o ponto de partida para discutir se o cálculo da indenização deve ser feito usando o índice de correção monetária, mais juros de mora de 1% ao mês, ou apenas com a aplicação da Taxa Selic — taxa de juros básica da economia do país, hoje, em 2% ao ano.
Para a consumidora gaúcha a diferença no valor da indenização seria de cerca de R$ 14 mil. No primeiro caso, ela receberia de cerca de R$ 47 mil e, no segundo, em torno de R$ 33 mil.
Segundo os especialistas em defesa do consumidor, no entanto, a mudança terá efeito muito mais amplo e pode tornar ainda mais vantajoso para as empresas postergar uma solução extrajudicial ou no Judiciário.
— Com uma inflação prevista em torno de 4% e a Selic, em 2%, isso representaria juros negativo este ano. Ou seja, sem os juros de mora, quanto mais a empresa postergar para pagar, menor será a indenização. Trata-se de uma medida que pode se voltar contra o próprio Judiciário, já que será mais lucrativo aplicar o dinheiro e empurrar com a barriga os processos, pois a dívida será corroída com o tempo— afirma o advogado Leonardo Amarante, que representa a aposentada na ação que será analisada pelo STJ.
O julgamento mobilizou a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e a Confederação Nacional das Seguradoras (CNSeg) que se apresentaram como amicus curiae, expressão usada para designar pessoa ou instituição que tem a finalidade de oferecer subsídios para ajudar nas decisões dos tribunais.
As duas entidades apresentaram posicionamentos em defesa da adoção exclusiva da Selic, sem a aplicação do juros de mora.
Desmotivação à solução
A ampliação do escopo do julgamento foi feito pelo relator do caso, o ministro Luis Felipe Salomão. Em seu voto, Salomão explica que apesar da Corte Especial do STJ — no julgamento dos Embargos de Divergência no Recurso Especial 727.842/SP, em 2008 —ter legitimado “a aplicação da taxa Selic sobre os créditos do contribuinte” e “débitos para com a Fazenda Nacional”, o tema ainda não tinha sido enfrentado nas turmas de direito privado.
Em seu voto, o ministro considera a Selic inadequada para indexar as indenizações das ações relacionadas ao direito privado — como é o caso da aposentada. Salomão defende a manutenção dos juros de mora mais um índice de correção monetária determinado pelos Tribunais de Justiça estaduais, que geralmente reflete a inflação.
“A adoção da Selic para efeitos de pagamento tanto de correção monetária quanto de juros moratórios pode conduzir a situações extremas: por um lado, de enriquecimento sem causa e, de outro, um incentivo à litigância habitual, recalcitrância recursal e desmotivação para soluções alternativas de conflito, ciente o devedor que sua mora não acarretará grandes consequências patrimoniais, ” pondera o ministro em seu voto.
Enriquecimento sem causa
Em nota, a Febraban apresenta uma visão diferente da do ministro e diz entender que “a Selic deve continuar a prevalecer, pois, como única taxa com efeito neutro (melhor retorno com o menor risco), garante a boa política judiciária.
Qualquer fator diferente dela será um incentivo para que uma ou outra parte do processo prolongue as discussões judiciais, prejudicando as iniciativas de conciliação e desjudicialização. Se o fator for menor do que a Selic, o devedor adiará o pagamento ao máximo. Já, se for maior do que a Selic, o credor retardará o quanto puder o recebimento.”
Walter Moura, advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), que também participa como a amicus curiae, chama atenção para o fato de que a Selic oscilar de acordo com a política monetária do governo, como uma das ferramentas de controle da inflação. E pondera que as taxas pagas pelos consumidores em débito com suas obrigações estão entre as mais altas do planeta:
— Mas quando o cidadão é credor, por conta de algum dano que tenha sofrido, querem mudar a regra. Ninguém fica rico ao processar um fornecedor e esse não é objetivo. Mas a mudança vai tonar barato desrespeitar o consumidor.
A Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg) argumenta que a manutenção de juros de mora de 1%, “com a inflação baixa e a poupança rendendo abaixo da inflação, a ‘rentabilidade’ de uma decisão judicial favorável ao autor, poderá ser muito benéfica, pois poderá ultrapassar rendimentos de 12% ao ano.” Para a CNSeg, “a tal rentabilidade geraria um enriquecimento sem causa por parte do autor, vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro”.
Caráter punitivo
Amarante, por outro lado, ressalta a previsão do juros de mora no Código Civil, e destaca o preceito legal de justa indenização:
—Trata-se de uma mudança oportunista. Quando a Selic estava na casa dos 20% ninguém recorria para que fosse aplicada, e já passaram centenas de ações no meu escritório desde a decisão da Corte Especial em 2008. Se a taxa voltar a subir vamos trocar de novo?
Há 12 anos brigando na Justiça pela indenização por um erro médico durante o parto que causou sequelas que culminaram com a morte de seu filho antes de completar 4 anos, a administradora Valéria Pellon se indigna com a teoria de que brigar na Justiça pode ser um bom investimento:
— Pensei muito antes de entrar com o processo, pois até hoje é muito dolorido relembrar. Para mim não interessa se é 1% ao mês ou Selic, a única preocupação é que a indenização tenha de fato um caráter punitivo, para que as empresas não repitam uma prática danosa ao cidadão — diz.
Fonte: O Globo