Por Melissa Areal Pires, advogada especialista em Direito Aplicado aos Serviços de Saúde e Direito do Consumidor da Areal Pires Advogados – 10/06/2020
Não podem ser aceitas como legítimas as dificuldades que estão sendo impostas pelos planos de saúde aos usuários nesse momento de pandemia. Também é ilegal a omissão da ANS na regulamentação efetiva das relações entre usuários e operadoras, sendo certo que as medidas adotadas pelo órgão regulador, desde a pandemia, têm gerado consequências nefastas para o sistema da saúde suplementar, causando sensível piora nas relações que, nesse momento, precisavam de esforço para serem harmonizadas.
A Justiça tem sido o palco para os debates dessas dificuldades. E faz bastante tempo que esse debate vem sendo feito, tendo sido agravado nesse momento de grave crise.
Pergunta-se: como resolver a judicialização da saúde diante de um cenário de flagrante ilegalidade nas condutas das operadoras de saúde, aliadas à omissão regulatória da ANS? Como pode o consumidor ser responsabilizado pela judicialização da saúde, como pretendem alguns especialistas, diante desse cenário de abandono daquele que deveria ser privilegiado, ou seja, o usuário do serviço, aquele que sustenta a empresa?
Há quem acredite que só existe abandono para o usuário do SUS. Contudo, infelizmente, o panorama que se afigura atualmente na nossa sociedade é que este abandono também existe na saúde suplementar, em virtude de condutas absolutamente ilegais por parte das operadoras de planos de saúde, chanceladas por medidas regulatórias da ANS, que é o órgão que deveria primar pela defesa do consumidor na mesma medida em que harmoniza a relação com a operadora de plano de saúde.
É inadmissível que a ANS favoreça, em suas medidas, as operadoras de planos de saúde em detrimento do consumidor. Tal conduta é inconstitucional, viola o art. 170 da nossa Carta Magna, que prevê a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica, que, por sua vez, é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, além de ter por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Já venho falando que foi gravíssima a medida adotada pela ANS de prorrogar os prazos de atendimento da RN 259/11 da ANS, durante a pandemia. A medida trouxe mais problemas do que soluções, já que pacientes portadores de outras patologias que não a Covid-19, sem gravidade, tiveram que suspender ou adiar tratamentos médicos. É notório o grave prejuízo à vida e à saúde dessas pessoas, que tiveram que continuar pagando as altas mensalidades do plano de saúde sem a garantia efetiva de que receberiam a assistência à saúde legitimamente contratada.
Matéria no Jornal O Globo do dia 8/6/2020 denuncia que as pessoas estão morrendo em casa (https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus/mortes-em-casa-disparam-especialistas-afirmam-que-numeros-podem-indicar-subnotificacao-de-covid-19-24467945). Por que será? Está faltando assistência médica, tanto pelo SUS, quanto pelos planos de saúde. Não se pode mais admitir que o governo não tome medidas com vistas a proteger o usuário do sistema, seja ele público, seja o privado, tendo em vista o disposto nos arts 196 e 197 da Constituição Federal:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
De fato, o consumidor não poderia ficar de braços cruzados. A revisão das condições do contrato de assistência médica está sendo arbitrariamente negada pelas operadoras de planos de saúde na esfera extrajudicial. O consumidor, de boa-fé, e que depende do serviço, certamente foi se socorrer junto o Poder Judiciário, diante da premente necessidade de manutenção dos serviços de assistência médica, legitimamente sustentando a ocorrência de onerosidade excessiva, que é requisito legal para a revisão de contratos, sejam eles regulados pelo Código de Defesa do Consumidor, sejam em relações civis não submetidas ao regramento especial de defesa do consumidor, parte mais vulnerável da relação.
Diversos outros setores da economia estão renegociando contratos. Por qual razão o setor da saúde suplementar não teria também que renegociar?
São muitas as ilegalidades enfrentadas pelo consumidor de planos e seguros de saúde, especialmente nesse momento de pandemia. Abaixo, listo apenas algumas delas:
- Pagar mensalidades com reajustes ilegais e, ainda assim, não lhe ser disponibilizada a assistência médica contratada
- Não conseguir promover alterações contratuais que lhe garantam pagar um preço menor na mensalidade, ainda que com redução da assistência (perda de rede credenciada), o chamado “downgrade”
- Não conseguir respostas para os questionamentos
- Não conseguir realizar portabilidade de carências
- Passar por dificuldades específicas quando consumidor é idoso ou portador de doenças preexistente
- Equipe de venda dos produtos, tais como corretores e administradoras de benefícios, extremamente mal preparadas para responder os questionamentos do consumidor e insistindo na prática de condutas ilegais, obrigando consumidor a litigar em juízo.
- Ter o contrato cancelado sem qualquer aviso prévio, mesmo com todas as mensalidades quitadas e durante o período de internação
Certo é que as operadoras de planos de saúde não podem ser obrigadas a negociar. Mas podem obrigadas a rever as condições do contrato, se o clamor do consumidor, em juízo, for atendido.
Recentemente, tomei conhecimento de decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que, infelizmente, não agiu, no mínimo, com empatia, ao negar ao consumidor o direito de obter a revisão do seu contrato de assistência médica, por meio de recebimento de propostas de downgrade em seu plano de saúde, que foram negadas extrajudicialmente pela AMIL, obrigando o consumidor, idoso e doente, parte mais vulnerável na relação, a buscar a Justiça com um pedido liminar e ter o seu direito ceifado de imediato.
Certamente confio que essa decisão será brevemente revista, pois, de forma absolutamente ilegal, continuou deixando o consumidor à sua própria sorte nesse momento de pandemia. Confio que, ao final do processo, seja feita a Justiça, e seja permitido ao consumidor a revisão das condições do contrato de assistência médica, como lhe garante o art. 6 do Código de Defesa do Consumidor.
Espero que o consumidor de plano de saúde consiga continuar pagando as altas mensalidades com vistas a evitar que seu contrato seja cancelado por falta de pagamento, o que prejudicaria gravemente tratamentos médicos que já estão sendo feitos pelo consumidor. Tal esperança é legítima e, de fato, está acontecendo, visto que a própria ANS afirmou que houve queda na inadimplência nos planos individuais, por exemplo, o que significa que está havendo um sacrifício enorme do usuário do sistema para manter o serviço, por medo de perde-lo e não ter suporte para custear tratamento médicos, muitos deles já em andamento, outros que possam vir a ser necessários, especialmente nesse momento de pandemia.
É incompreensível que, diante da queda da inadimplência atestada pela própria ANS, diante do vácuo normativo da ANS, os planos de saúde estejam dificuldades para prestar o serviço e que necessitem de decisões (administrativas ou judiciais) que privilegiem seus interesses e detrimento dos interesses do consumidor, que prejudiquem o cumprimento da obrigação contratual da empresa, que é prestar serviços de assistência médica.
As grandes operadoras de planos de saúde deram vários recados à sociedade quando se recusaram a assinar o termo de compromisso proposto pela ANS para manutenção dos serviços aos inadimplentes durante a pandemia, dentre eles: temos dinheiro; não precisamos de acesso ao fundo bilionário; não importa se meus clientes estão com dificuldades para pagar as mensalidades do plano; podemos cancelar o contrato coletivo no momento em que quisermos, sem precisar justificar desequilíbrio econômico financeiro; podemos exigir cumprimento de novos prazos de carência e cobertura parcial temporária em novos contratos; podemos cancelar o contrato sem oferecer a contratação de outro produto no lugar; podemos aproveitar o vácuo normativo da ANS para insistir na prática arbitrária de cancelamento unilateral de contratos, especialmente os individuais/familiares e/ou os antigos não regulamentados, ou, ainda, aqueles que não dão lucro.
Esse panorama fez aumentar em 62% as reclamações contra planos de saúde no portal de intermediação de conflito Consumidor.gov, de janeiro a abril deste ano em relação ao mesmo período de 2019 conforme dados do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), órgão do Ministério da Justiça.
Os pronunciamentos de entidades da saúde suplementar sobre o assunto não esgotam o debate da problemática e tudo fica por isso mesmo.
Vera Valente, diretora executiva da Federação Nacional da Saúde Suplementar (FenaSaúde), em matéria no Jornal O Globo do dia 7/6/2020 (https://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/na-pandemia-negociar-com-planos-de-saude-tarefa-quase-impossivel-24467144) afirma que o setor está sensível às dificuldades dos beneficiários, justificando tal sensibilidade na medida adotada pelas operadoras de planos de saúde de suspender, voluntariamente, por 90 dias, a partir de 1º de maio, os reajustes de contratos de planos individuais, coletivos por adesão e empresariais até 29 vidas.
Como amplamente debatido nesse artigo, que reflete bastante contrariedade na relação conturbada entre usuário do serviço, operadora e ANS, as medidas adotadas pela FenaSaúde são insuficientes e, portanto, não são capazes de, sozinhas, resolverem o grave problema.
Ademais, não podem ser consideradas como benesses para o consumidor, visto que a legislação brasileira autoriza esse mesmo consumidor a pleitear revisão das condições do contrato. Assim, se o consumidor fosse à Justiça para pleitear, individualmente, o que a FenaSaúde fez extrajudicialmente, certamente a justiça poderia lhe garantir o direto de suspensão do reajuste. Importante notar que a FenaSaúde não fez mais que a sua obrigação. O problema é que existem outras obrigações que, até o momento, permanecem, diuturnamente, sendo descumpridas pelas operadoras de planos de saúde, e que não são reconhecidas como ilegítimas por essas empresas, o que dificulta enormemente o diálogo entre os consumidores, governo e as próprias empresas.