Para o magistrado, a dispensa da carência indistinta acarretaria contratação em massa, sem que tivesse havido a contraprestação respectiva.
O juiz de Direito Otto Bismarck Nobre Brenkenfeld, da 4ª vara Cível de Natal/RN, revogou liminar e indeferiu pedido da DP do Estado que pleiteava que os casos relacionados ao covid-19 fossem enquadrados como atendimentos de emergência.
O magistrado observou que a decisão previa a dispensa do cumprimento dos prazos de carência contratual durante a pandemia. Para ele, a dispensa da carência indistinta acarretaria contratação em massa, sem que tivesse havido a contraprestação respectiva.
A liminar questionada autorizava, de imediato, os procedimentos médico-hospitalares prescritos pelos médicos assistentes para os usuários dos planos de saúde exclusivamente nos casos suspeitos ou, presumindo-os de emergência, se confirmados de covid-19 abstendo de exigir o cumprimento do prazo de carência superior a 24 horas, sob pena de multa.
Vários planos de saúde pugnaram pela reconsideração da decisão, dentre eles, a Unimed Natal Sociedade Cooperativa de Trabalho Médico e a Amil Assistência Médica Internacional alegaram que a eliminação do período de carência expõe as operadoras/seguradoras a uma enorme insegurança jurídica, deixando-as vulneráveis a contratações nocivas.
Ao analisar o caso, o magistrado acolheu as irresignações. Para ele, não é possível presumir-se emergencial todo e qualquer atendimento de paciente com suspeita ou diagnóstico confirmado de covid-19, muito menos dispensar as carências contratuais.
O magistrado observou que dispensar as carências contratuais, de forma indistinta, em relação a todos os usuários de plano de saúde com suspeita ou diagnóstico de covid-19 autorizaria uma contratação em massa, com a utilização plena do sistema privado de saúde, “sem que tivesse havido a contraprestação respectiva, em evidente desequilíbrio contratual em desfavor dos planos de saúde, notadamente pelo fato de que não há como se prever por quanto tempo perdurará a situação de calamidade decretada em fevereiro de 2020”, disse.
Assim, exerceu o juízo de retratação para revogar a liminar e, consequentemente, indeferir na íntegra a pretensão autoral de dispensa do cumprimento dos prazos de carência contratual previstos pelo artigo 12, V, da lei de 9.656/98, durante a pandemia.
Fonte: Migalhas
Opinião, por Melissa Areal Pires, advogada especialista em Direito Aplicado aos Serviços de Saúde e Direito do Consumidor da Areal Pires Advogados
A dispensa do cumprimento de prazos de carência para tratamentos da Covid-19
Visando solucionar o problema de diversos pacientes que necessitam de tratamentos médicos para a Covid-19 e não conseguem autorização do plano de saúde por causa de cumprimento de prazos de carência, a Defensoria Pública do RN ingressou com medida judicial requerendo a concessão de decisão liminar para, durante a pandemia, obrigar os planos e seguros de saúde a considerarem todos os casos da Covid-19 (suspeitos ou confirmados) como de urgência e emergência, e, por este motivo, darem cobertura imediata ao tratamento da doença após 24 horas da contratação dos serviços pelo consumidor, dispensando-os do cumprimento de qualquer outro prazo de carência eventualmente previsto no contrato.
A liminar chegou a ser concedida e eximia, não somente os consumidores portadores da Covid-19 mas também aqueles com suspeita de contaminação, do cumprimento dos prazos de carência que estivessem previstos no contrato. Assim, obrigou as operadoras de planos e seguros de saúde a darem cobertura, de imediato e indiscriminada, a todos as despesas médico-hospitalares referentes a procedimentos prescritos pelos médicos assistentes a casos relacionados a Covid-19.
Assim, de acordo com a liminar, quem tivesse cumprindo o prazo de carência de 180 dias para internação, previsto no art. 12, V, “b”, da lei 9.656/98, não precisaria mais cumpri-lo, sendo obrigada a operadora de plano de saúde a dar cobertura as despesas da internação após 24 horas da contratação.
A liminar não se sustentou e foi revogada por meio do juízo de retratação. Anotou o julgador que a dispensa indiscriminada do cumprimento de prazos de carência teria uma grave consequência para as operadoras de planos de saúde, que estariam obrigadas a darem cobertura imediata a tratamentos médicos sem terem recebido a contraprestação pecuniária para tanto.
Além disso, observou o julgador que não pode o Poder Judiciário, de forma indiscriminada, presumir que todo caso relacionado a Covid-19 é de urgência e emergência e, com base nessa presunção, obrigar os planos e seguros de saúde a dispensarem o cumprimento de prazos de carência que estão legalmente previstos, sob pena de causar insegurança jurídica nas relações e poder gerar uma contratação em massa para utilização imediata dos serviços de assistência médica. Essa contratação em massa, segundo o julgador, é capaz de causar desequilíbrio contratual em desfavor das operadoras de planos e seguros de saúde.
A questão principal a ser observada nessa revogação é o fato de não ser possível ao Poder Judiciário, de forma indiscriminada e preventiva, considerar qualquer tratamento médico como de urgência e emergência, ainda que seja para a Covid-19. Somente o médico é o profissional habilitado para dar essa definição a qualquer tratamento médico. O julgador entende que a Defensoria Pública do RN não foi capaz de comprovar, tecnicamente, que todo caso confirmado ou suspeito de Covid-19 possa ser considerado, presumidamente, como de urgência e emergência.
É sabido que há casos, suspeitos ou confirmados da Covid-19 que, de fato, não são considerados de urgência e emergência, sendo certo que cabe ao médico o cumprimento de suas obrigações civis e administrativas (especialmente perante o seu conselho profissional) de esclarecer ao paciente as condições do atendimento médico necessitado, cuja avaliação sobre a urgência e emergência é exclusivamente técnica ou, seja, caso a caso.
O STJ já firmou entendimento de que a palavra final sobre o tratamento do paciente é do médico assistente escolhido por ele, não podendo a operadora de plano de saúde interferir na decisão tomada pelo paciente. A operadora de plano de saúde deve cobrir o tratamento, podendo questionar, apenas, as exclusões de cobertura previstas no art. 10 da lei 9.656/98. Há também o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, criado pela Agência Nacional de Saúde, para, além das exclusões legais, autorizar as operadoras a também não cobrirem alguns outros procedimentos. Contudo, com relação a essas exclusões de cobertura do Rol, há que se notar que o Poder Judiciário vem obrigando os planos e seguros de saúde cobrirem tratamentos médicos ainda que não estejam previstos no Rol, especialmente nos casos em que há expressa indicação médica de procedimento como única forma de resguardar a vida e a saúde do paciente, não havendo substituto previsto no Rol.
Assim, a própria Justiça já definiu que, na relação consumidor x planos e seguros de saúde, a palavra do médico é a final. Desconsiderar que cada caso deve ser avaliado de forma individualizada pode, de fato, causar desequilíbrio na relação e violar o princípio da harmonização das relações de consumo prevista no art. 4, III do Código de Defesa Consumidor.
Note-se que, em sendo caso de urgência e emergência, nenhum plano ou seguro de saúde pode se negar a cobrir despesas de tratamentos médicos para todas as doenças listadas na Classificação Internacional de Doenças da OMS, tal como previsto no artigo 10 c/c 12, V, “c” da lei 9.656/98. Assim, havendo indicação médica para tratamento de urgência e emergência e independente de qualquer medida judicial a ser proposta junto ao Poder Judiciário, não há que se falar em cumprir quaisquer outros prazos de carência previstos no contrato. Se a operadora não entender que o caso é de urgência e emergência, certamente não dará a cobertura e, assim, o paciente poderá se socorrer de uma medida judicial. Antecipar-se a essa situação é uma conduta que, embora tenha o objeto de salvar vidas, interfere no sistema de saúde brasileiro, o qual prevê, no art. 196 da CF, que a obrigação de garantia do direito à saúde é do Estado, sendo certo que há limites para as obrigações dos planos e seguros de saúde.
O que a liminar fez foi dispensar a palavra do médico e, de fato, não há legitimidade para o Poder Judiciário passar por cima da palavra do médico e determinar que as operadoras de planos e seguros de saúde cubram internações antes do prazo de carência quando a situação não é, tecnicamente, de urgência e emergência.
Entendo que não há necessidade de preocupação quanto aos casos suspeitos da Covid-19, visto que, ainda não confirmada a doença, os sintomas apresentados estão sendo tratados como sendo de outras doenças respiratórias, o significa que, sem tratamento médico o usuário do plano ou seguro de saúde não deverá ficar.
Portanto, sem se ter a confirmação que o caso é de urgência e emergência, exigir da operadora de plano e seguro de saúde a cobertura das despesas do tratamento de qualquer doença, ainda que seja a Covid-19, eximindo o paciente de cumprir o prazo de carência para internação de 180 dias previsto na lei 9.656/98 (ou outro menor que eventualmente esteja previsto no contrato), pode ser visto como uma interferência indevida na relação contratual, haja visto que, embora seja permitido ao Poder Judiciário rever os contratos de consumo (art. 6, V do Código de Defesa do Consumidor), é preciso buscar sempre o equilíbrio da relação, certamente com a proteção dos mais vulneráveis, mas em estrita observância ao regramento sobre o assunto.
Sabemos que inúmeros consumidores atualmente estão cumprindo prazos de carência para a internação de forma ilegal, visto que não conseguem realizar a portabilidade de carência. As ilegais regras da portabilidade de carências, previstas na RN 438/18 da ANS, vem impedindo diversos consumidores de continuarem tratamentos médicos quando precisam mudar de contrato. Muitos consumidores estão se vendo, em meio a pandemia, sem plano ou seguro de saúde, que vem sendo cancelados indiscriminadamente, sem qualquer aviso prévio, mesmo com todas as mensalidades pagas. Outros consumidores estão precisando realizar downgrade para reduzirem a cobertura do plano e, consequentemente, o valor da mensalidade e as operadoras não estão permitindo. Alguns foram demitidos e perderam seus planos de saúde, sendo certo que ao trabalhador que não contribuiu na mensalidade do plano, durante a relação empregatícia, a Agência Nacional de Saúde o obriga a cumprir, novamente, todos os prazos de carência que já tinham sido cumpridos anteriormente. Essas e outras condições abusivas da relação consumidor x plano de saúde foram permitidas pela RN 438/18.
Assim, não é passando por cima da palavra do médico que vamos solucionar o problema. É preciso, primeiro, que a operadora de plano de saúde se negue a garantir o cumprimento do art. 12, V, “c” ou seja, se negue a dar cobertura, após 24 horas da contratação, aos casos que são declarados pelo médico assistente como de urgência e emergência relacionados a Covid-19. Caso assim o faça, o consumidor pode socorrer-se de uma medida judicial, garantindo-se, com seu médico de confiança, que, de fato, a situação é considerada, tecnicamente, como de urgência e emergência. Tendo esta indicação, nenhum julgador irá lhe retirar o direito de ter as despesas do tratamento cobertas pelo plano de saúde.
Por outro lado, se as despesas não são de urgência e emergência e o paciente com suspeita ou confirmação da Covid-19 necessita de internação e ainda está cumprindo prazo de carência para tanto, é preciso verificar se há legalidade na exigência desse prazo de carência pela operadora de saúde de saúde. A portabilidade de carência, mesmo que regulamentada de forma totalmente equivocada pela ANS, existe e precisa ser avaliada sob a ótica do Código de Defesa Consumidor. A experiência advinda da avaliação criteriosa de novas contratações de planos e seguros de saúde demonstra situações inadmissíveis suportadas por consumidores de planos e seguros de saúde que buscam trocar de plano de saúde por qualquer motivo.
Por fim, para quem está contratando um plano de saúde pela primeira vez, é preciso observar que a lei 9.656/98 permite à operadora de plano de saúde exigir cumprimento de prazos máximos de carência. São eles: (i) 300 dias para parto; (ii) 180 dias para os demais casos, como, por exemplo, internações, consulta e exames; (iii) 24 para casos de urgência e emergência. Destaque-se ainda, que os filhos, naturais e adotivos, tem o direito de ingressar no contrato dos seus responsáveis legais com aproveitamento de todas as carências já cumpridas pelo responsável, mediante a solicitação feita pelo responsável em até 30 dias do nascimento e desde que os responsáveis tenham contratado a cobertura obstetrícia.